A forma mais comum de se construir o tempo de uma narrativa é através da linearidade. Segue-se uma ordem cronológica: o passado no passado, que se desenvolve até o presente, o futuro só chega depois ou fica para a imaginação.
Nem todo livro precisa ser assim. Você pode publicar ebook que começa do fim e termina no começo, tal qual o filme Amnésia (2001), no qual o protagonista sofre com perda de memória recente e precisa traçar os eventos que o levaram até o presente; ou você pode até mesmo seguir ordem nenhuma.
Becos da Memória, de Conceição Evaristo, é um exemplo de narrativa não linear. Situado no passado, como o título sugere, o livro é uma escrevivência das memórias de Conceição Evaristo na favela onde cresceu. Lacunas preenchidas com imaginação, a ficção e a realidade se (con)fundem, como a própria autora afirma. E a narrativa segue assim, lembrando de uma personagem, falando de certos eventos, passando para outra, como se transitasse pelos becos.
A não linearidade de Conceição Evaristo, traçada pelas memórias, é como um fio – ou um fluxo, o fluxo da consciência. Uma frase ativa uma memória “Vó Rita dormia embolada com ela” e, a partir daí, vêm uma enxurrada, memórias e histórias, uma depois da outra, às vezes dando voltas.
A narrativa pode até transcender as formas prosaicas e se confundir com a poesia em uma literatura plural em vários sentidos, como é o caso do livro Garota, Mulher, Outras da autora inglesa Bernardine Evaristo.
Em cada parte da história, acompanhamos uma personagem-foco diferente, que vive um contexto diferente, com um tempo de narração diferente, somando doze personagens-foco e doze “blocos” narrativos num todo.
Para contextualizar melhor, a história começa sob a perspectiva de Amma, uma diretora teatral de sucesso prestes a estrear o que pode ser sua obra-prima. Depois, começa uma nova seção, sob a perspectiva de sua filha, Yazz; seguida de mais outra, sob a perspectiva de Dominique, melhor amiga de Amma.
Essas três seções, todas narradas em terceira pessoa, mas com um estilo indireto livre que se mescla com sua voz e seus pensamentos, trazendo à tona de forma vívida a identidade de cada personagem-foco, compõe o capítulo um. E no capítulo dois, conhecemos mais três personagens, também conectadas entre si.
Nesses pulos de perspectiva narrativa, conhecemos personagens contemporâneas, mas também viajamos para décadas e décadas atrás, ouvindo sobre a trajetória e juventude de mulheres que agora já tem filhos, netos, bisnetos.
Não há uma conexão nítida entre uma seção e outra. As cenas não são interconectadas. Você está acompanhando uma personagem e, após certo ponto de conclusão do seu arco narrativo próprio (nunca muito longo), de repente ouve a voz de outra.
As conexões de Garota, Mulher, Outra são de uma natureza muito mais sutil. Está nos laços das personagens em si: a mulher que você pariu, a mulher que pariu você, sua melhor amiga, sua professora, sua colega de classe, sua esposa, sua vó. Em um fio de relações humanas, até mesmo as personagens que não se conhecem também são conectadas, ainda que indiretamente.
E isso se dá de forma muito única, pois Bernardine Evaristo optou por um estilo poético, que não usa blocos de prosa e, sim, versos longos sem letra maiúscula no começo, nem ponto no final. “Experimental” é o adjetivo que se enquadra para descrever essa obra e, consequentemente, também pode chama-lo de “original” e “vibrante”.
Uma outra forma de narrativa não tão linear, mas menos audaciosa que o experimento de Bernardine Evaristo, são os livros com dois tempos de narração. Muito populares hoje em dia, essas obras quase parecem uma promoção de pague um, leve dois para o público leitor.
Esses livros são caracterizados por se dividirem em dois (ou mais) arcos narrativos, cada um com sua própria personagem principal, situados em épocas e/ou lugares diferentes. O mais comum é que uma protagonista tenha vivido no passado, tornando a obra em parte uma ficção histórica, e que a outra habite na contemporaneidade.
Para que um livro com dois arcos narrativos distintos funcione, é preciso alcançar um equilíbrio muito próprio. Ambas as partes do livro devem ser interessantes e terem certa autonomia, mas ainda é preciso estabelecer alguma conexão (ou ainda melhor, uma interseção) que justifique a sua escolha de publicar livro em volume único, e não como duas obras separadas.
Uma das piores coisas que pode acontecer a um livro nesse modelo é o leitor só gostar de um arco da história e ignorar o outro.
Essa conexão, ou interseção, pode se dar de várias formas. Pode ser uma questão de laços familiares ou sanguíneos. Pode ser que exista um objeto que conecte essas pessoas, como no romance O Vestido de Noiva de Rachel Hauck, que acompanha diferentes mulheres que tiveram o mesmo vestido.
A conexão pode se formar no campo do simbólico, nas afetividades, nas coincidências. Pode ser que uma pessoa que vive hoje em dia encontre documentos históricos de alguém do passado cuja história de vida mexa com seus sentimentos. Podem ter sido trajetórias semelhantes, paralelas.
É até mesmo possível, embora não tão comum, escrever uma história nesse modelo com uma mesma personagem principal. Neste caso, a tendência é que ela tenha mudado profundamente entre uma época e outra, e a narrativa pode investigar essa mudança.
Quanto ao formato, cabe ao autor. Na autopublicação, em especial, não há limites criativos. Você pode intercalar as duas épocas ou pode escrever um bloco por vez: primeiro o passado, depois o presente e vice-versa. Independentemente da sua escolha, é importante que cada seção da história tenha sua identidade própria, de fácil reconhecimento para o leitor.
Cada época deve ter a sua própria atmosfera, cada personagem (ainda que seja a mesma pessoa, só mudada) deve ter sua própria voz. Uma mudança de narrador também pode auxiliar nessa distinção.
Por exemplo, a narração no presente pode ser em primeira pessoa ou terceira pessoa, acompanhando os eventos conforme eles acontecem e até mesmo os pensamentos da personagem-foco. No passado, a narrativa pode ser construída através de um diário, no qual a personagem-foco relata em primeira pessoa o que aconteceu.
Nesse sentido, você pode explorar os mais diferentes tipos de texto: cartas, documentos, biografias, diários, agendas, e-mails, notícias, mensagens. Até mesmo uma comunicação telepática com alguém do futuro está na mesa, basta imaginar.
E aí, autor? Qual o tempo da sua história?