Representatividade: sexualidades dissidentes na literatura – Parte 1

Vivemos em uma sociedade diversa. Existem pessoas de diversas cores, religiões, identidades e formas de amar. Não há apenas um jeito de ser. No entanto, quando olhamos para a televisão, não é essa mesma realidade que enxergamos. Nas novelas, a maioria do elenco é branco. A maioria das personagens é heterossexual.

O pouco de inserção das minorias que observamos é quase sempre à margem, como no infame caso da novela que se passava no nordeste e a cena com mais negros presentes se passava na cadeia. Quanto à representatividade LGBT+, é quase resumida ao “beijo gay”, que teve sua primeira aparição na Rede Globo em 2014.

Infelizmente, não podemos afirmar que a literatura é tão diferente assim. Ainda que com muito mais amplitude de espaço para autores independentes que querem publicar ebook e explorar narrativas únicas, o que observamos na consagrada academia é uma maioria de autores homens, brancos, heterossexuais, cisgêneros. E esses autores escrevem personagens como eles, também em maioria.

Quando se trata de representar grupos minoritários, especialmente de identidade LGBT+, muitas questões entram em jogo. Entre elas, o moralismo, uma noção de “certo” ou “errado”, de “normal”. Não é segredo que religiões dominantes, como o cristianismo, historicamente condenaram essas pessoas. Ainda há forte discriminação estrutural. Muitas pessoas ainda se sentem no direito de questionar a própria legitimidade da existência de identidades LGBT+.

O fato é que pessoas LGBT+ existem. Independentemente de crenças individuais e do esforço sistemático para deletá-las do mundo. E se elas existem, por que não representá-las? Ou melhor: representá-las não seria o dever de todo escritor que tem compromisso com a realidade?

Pode-se argumentar que a literatura também tem o papel de propor uma realidade diferente. Contudo, diferente em quê? Para alguns, deveria ser um mundo melhor. Neste caso, por que não propor um mundo onde não há discriminação? E é importante pensar na diferença entre a não existência de discriminação e a não existência de identidades diversas. Um mundo onde só há igualdade porque não existem pessoas diferentes é um mundo eugenista, e não precisamos sequer discutir sobre o porquê desse pensamento ser tão perigoso.

Mesmo a literatura propondo uma realidade diferente, ela ainda a propõe para as pessoas que existem aqui e agora. São seus leitores. Pessoas como você, que querem se conectar com seu livro. Pessoas que podem ter identidades diversas.

Por isso, nas dicas de autopublicação de hoje, vamos falar um pouco mais sobre orientações sexuais e identidades de gênero dissidentes. Isto é, que não se conformam à norma, que divergem do padrão.

As facetas da não heterossexualidade

Todo mundo sabe que gays existem. Queremos falar de grupos além deles. Para começo de conversa, falar sobre mulheres lésbicas. Mulheres que amam mulheres. Que se interessam romântica e sexualmente apenas por mulheres. Aqui, o “detalhe” mais importante é que elas não se interessam por homens. Não falta a elas conhecer o homem certo. Nem tudo gira em torno de homens.

Seguindo adiante, o mundo não se divide entre hétero e homo. Se uma pessoa não é heterossexual, isso não a torna automaticamente homossexual. Existem outras possibilidades. As pessoas não precisam restringir sua atração a apenas um gênero. É possível ser bissexual, por exemplo.

Infelizmente, pessoas que não se enquadram em uma orientação monossexual (ou seja, atração por apenas um gênero) são constantemente invisibilizadas e suas identidades postas em cheque. A questão é que “não acreditar” em pessoas bissexuais não faz com que elas deixem de existir. E o mundo está cheio de pessoas que se relacionam tanto com homens quanto com mulheres.

É importante ressaltar que nem toda pessoa que se atrai por mais de um gênero se considera bissexual. Existe também a panssexualidade, a polissexualidade. A diferença entre essas identidades é sutil. Em geral, podem ser definidas da seguinte forma:

  • Bissexual – sente atração por mais de um gênero, mas vê diferença na forma que se sente em relação a cada gênero;
  • Panssexual – sente atração por pessoas de qualquer gênero, sem qualquer diferenciação. A atração independe do gênero;
  • Polissexual – sente atração por diversos gêneros.

Além das pessoas que sentem atração por mais de um gênero, a mono dissidência na sexualidade também pode ocorrer quando não há atração por nenhum gênero. É o caso das pessoas do espectro assexual e/ou arromântico. Isto é, pessoas que não sentem atração sexual e/ou romântica por outras pessoas.

Embora vivamos em uma sociedade que tende a considerar o sexo e o romance como parte integral da vida adulta, às vezes até mesmo da natureza humana, existem muitas pessoas que simplesmente não se sentem assim.

A assexualidade é um espectro. Existem os assexuais restritos (ou simplesmente assexuais), que não sentem nenhum tipo de atração sexual, e aqueles que se encaixam na “área cinzenta” da assexualidade, podendo sentir atração sexual em ocasiões específicas.

Dentro dessa área cinzenta, existem identidades como gray assexual (também conhecida como gray ace, grissexual, cinzassexual), que raramente sente atração sexual, e a demissexualidade, que se caracteriza pela atração sexual condicionada ao afeto. Ou seja, pessoas demissexuais conseguem sentir atração sexual quando desenvolvem uma conexão emocional com alguém.

A arromanticidade é uma identidade separada da assexualidade e que também se divide em um espectro. Existem pessoas arromânticas, demirromânticas, grayrromânticas. É possível que uma pessoa seja assexual e arromântica ao mesmo tempo, mas nem todos serão assim. Uma pessoa pode ser assexual e heterorromântica, por exemplo. Ou pode ser bissexual e arromântica. Por aí vai.

É muito comum que pessoas do espectro assexual e/ou arromântico demorem a compreender suas identidades por pura e simples falta de informação. Isso pode levá-las a tentar se encaixar e vivenciar relações sexuais e/ou românticas que as ferem. É inclusive comum que confundam pessoas assexuais com pessoas homossexuais, pela simples ausência de uma atração heteronormativa.

A comunidade assexual e arromântica compartilha muitas agressões com outros grupos da comunidade LGBT+.  Uma dessas ferramentas de opressão é a patologização, uma forma de categorizar a identidade dissidente como um desvio a ser corrigido. Todos já ouvimos falar da “cura gay”. Contra os assexuais, o argumento é que a assexualidade acontece devido a problemas hormonais, psicológicos ou psiquiátricos.

E assim, entramos novamente na mesma questão. Mesmo que você duvide da identidade de alguém, essa pessoa continuará existindo. Independentemente do que você pense em relação à origem da assexualidade, pessoas que não sentem atração sexual continuarão existindo. Elas têm o direito de existir. Elas têm o direito de clamar uma identidade que as descreve e contempla.

Sendo assim, por que não representá-las? Se você tem interesse em publicar livro que representa o mundo em que vive e as pessoas que nele habitam, é preciso pensar em identidades dissidentes. É preciso entendê-las. É preciso ouvir as pessoas que vivem realidades diferentes da sua.

Mesmo dentro dos grupos citados acima, existem diversas formas de ser. Uma pessoa pode ser assexual restrita e ter repulsa a sexo, não gostar nem de pensar no assunto. Outra pode ser assexual restrita e manter relações sexuais com um parceiro, seja para demonstrar carinho ou para conseguir prazer físico.

Igualmente, uma pessoa bissexual não deixa de ser bissexual só porque está em um relacionamento sério com apenas uma pessoa (que só tem um gênero). Relacionamentos não podem ter orientação sexual, apenas pessoas. Uma mulher bissexual se relacionando com outra mulher não se torna lésbica. Uma mulher bissexual se relacionando com um homem não se torna hétero. Ela é bi, apenas.

Escrever personagens diversos não é uma forma de ser “politicamente correto”. Nada mais é do que uma forma de representar o mundo como ele é, de fato.

Semana que vem voltamos com mais representatividade e identidades dissidentes na literatura, dessa vez falando sobre identidades de gênero!

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