Representatividade: identidades de gênero dissidentes na literatura – Parte 2

Semana passada, nas dicas de autopublicação da Bibliomundi, o tema foi representatividade: sexualidades dissidentes na literatura. Falamos sobre diferentes orientações sexuais que fogem ao padrão heteronormativo esperado pela sociedade e a relevância de sua representação na literatura. A ideia é simples: essas pessoas existem e, se existem, por que não representá-las?

Quase sempre, a ficção privilegia quem já é privilegiado no mundo real. Em sua maioria, vemos personagens que são brancas, magras, hétero e cisgênero. Isto é, personagens que não são nem negras, nem asiáticas, nem indígenas. Não são gordas. Não são gays, lésbicas, bis, nem mesmo assexuais. Não são trans.

Essas personagens, tão comuns, representam pessoas que são consideradas “normais” pela sociedade. Pessoas que são vistas, que têm voz. Elas representam toda uma linhagem de autores consagrados, em sua maioria homens brancos. O status quo.

Acontece que essas pessoas não são as únicas que existem. Talvez você, que está lendo este texto, seja um homem branco, cisgênero, heterossexual. Ou, talvez, você seja uma mulher asiática, bissexual, cisgênero. Contudo, você sabe que o mundo não é feito apenas de pessoas exatamente iguais a você, com as mesmas vivências que você.

Por que não olhar para outras possibilidades? Mais especificamente, as identidades que esquecemos de olhar. Quiçá, que ainda nem sabemos que existem. Podemos nos informar e representar o mundo como ele é: diverso.

Uma das palavras-chave no texto de hoje é: cisgeneridade. Significa se identificar com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer. Basicamente, se, quando você nasceu (ou estava em gestação), o médico olhou para o seu corpo e disse “é um menino”, e você concordou ao crescer, você é um homem cisgênero. Em outras palavras, se você não é trans, você é cis.

O termo cisgênero é necessário pois ele não tem uma carga pejorativa. Ele não sugere que pessoas trans são menos legítimas do que as pessoas cis, diferentemente de termos como “mulher biológica” ou “mulher natural” (como se mulheres trans não fossem naturais) ou “homem de verdade” (como se homens trans não fossem homens de verdade).

Quando se entende que ser trans e ser cis são duas possibilidades diferentes, é reduzido em algum nível o estigma das pessoas trans, que historicamente foram tratadas como marginais, anormais.

Para se pensar em identidades de gênero dissidentes, é preciso sair da caixinha da cisnormatividade. Antes de mais nada, parar de achar que os genitais ou os cromossomos de alguém definem o seu gênero. A pessoa pode ter o corpo como for. Sua identidade de gênero não depende disso. Sim, existem mulheres com pênis. Sim, existem mulheres com vagina. E não, não é okay ficar perguntando sobre os genitais dos outros.

Ser trans significa, no sentido mais puro da palavra, não se identificar com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer. Não significa “odiar o próprio corpo” ou achar que “nasceu no corpo errado”. Embora possam existir pessoas trans que pensem dessa forma, não se deve generalizar suas vivências. E associar a transgeneridade a “ódio” e “erro” de forma inerente é impor dor e negatividade à sua existência.

Por mais incrível que possa parecer, pessoas trans podem ser felizes e amar seus corpos. Olha só! E, por isso mesmo, quando um autor cisgênero escreve uma história que tem uma ou mais personagens trans, deve pensar bastante se não está reproduzindo uma velha narrativa dolorosa, que normativa o sofrimento trans.

Outra caixinha que deve ser destruída para se pensar em identidades de gênero dissidentes é o binarismo. Isto é, a ideia de que só se pode ser homem ou mulher. Talvez você nunca sequer tenha pensado que existem outras possibilidades, mas, na verdade, sempre existiram sociedades em que essa não era a norma. Sociedades em que é aceito não ser homem nem mulher, ou talvez ser os dois ao mesmo tempo, ou talvez ter outra identidade de gênero completamente diferente.

E mesmo que você não viva em uma dessas sociedades, existirão pessoas não-binárias. Isto é, pessoas que não se identificam com essa caixinha restrita do ser “homem” ou “mulher”. Mesmo que para você isso não faça o menor sentido, essas pessoas continuarão existindo, e a não binariedade será parte de quem são, das suas vidas, da maneira que interagem com o mundo.

Novamente, você “acreditar” ou “concordar” não mudará em absolutamente nada o fato de que essas pessoas existem. E, se existem, por que não se dar a oportunidade de conhecê-las, compreendê-las, respeitá-las?

Nosso objetivo, quando falamos da representatividade na literatura, não é que autores cisgênero falem por pessoas trans. Mas para que todo escritor, independentemente de sua própria vivência ou identidade, pense em como representar o mundo com toda a diversidade que, de fato, existe. É sobre o não apagamento.

Sobre escrever histórias que têm personagens de todos os tipos. Com todo tipo de personalidade, todo tipo de vivência, todo tipo de identidade. Sem cair em estereótipos. Sem olhar sempre para pessoas iguais. Permitindo-se ver o mundo em todas as suas cores.

Por que você não escreve uma história assim? Dê o primeiro passo. O artigo de hoje apenas mostrou a pontinha do iceberg de toda a diversidade que existe em identidades de gênero dissidentes. Se você quer saber mais, precisa procurar pessoas trans por conta própria. Ouvir o que elas têm a dizer. Conhecer a subjetividade de cada uma.

Para um primeiro passo para quem quer publicar livro com representatividade, recomendamos a artista Diana Salu, que publicou em seu Instagram a série “Então você quer escrever personagens trans?”, voltada para ficcionistas cisgênero. Dê uma olhada. Expanda seus horizontes.

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