Problemas de escrita: as marcas da oralidade no diálogo

Qual a diferença entre um diálogo ficcional verossímil e um diálogo real? Teria a ficção o objetivo de transmitir as marcas da oralidade com total fidelidade? Essas são algumas questões que, às vezes, um escritor precisa se perguntar.

A verossimilhança é um elemento que sempre surge nas discussões do nosso blog de autopublicação. Se você nos acompanha, é possível que já tenha lido o artigo Como escrever uma história verossímil. O tempo inteiro, tentamos ressaltar que até mesmo uma história de fantasia pode e deve ter verossimilhança.

Então, como isso se afasta do completo realismo? Por exemplo, se falamos em como escrever diálogos realistas, qual é a linha que separa a verossimilhança dessa fidelidade total à realidade? E qual o limite que faz com que o leitor pare de achar o seu texto agradável, plausível, real e comece a achar apenas… redundante?

O primeiro passo é compreender um pouco mais a fundo como é um diálogo oral na prática. Segundo Elizabeth Black, no livro Pragmatic Linguistics, foi somente com a introdução do gravador de voz que começamos a notar todas as marcas da oralidade, que desviam da linguagem padrão como representada na escrita. São elementos como frases incompletas, hesitações, mudanças de ideia no meio de uma frase e por aí vai.

É normal que, ao conversar em voz alta, o interlocutor não ensaie o que vai ser dito, nem tenha a possibilidade de apagar seus erros. A observação de Elizabeth Black sugere que nosso cérebro já esteja tão acostumado com essas marcas que, quando não acrescentam em nada à mensagem que está sendo transmitida, nós nem percebamos que estão ali.

Somente ouvindo de novo, atentamente, por gravação, sem nos inserirmos na interação dinâmica que é um diálogo, que notamos a total extensão dessas marcas.

Agora, pense bem. Como um autor de ficção, é interessante publicar livro que contém uma verdadeira transcrição do que é um diálogo oral na vida real? Segundo outro pesquisador, Edgar W. Schneider, o diálogo transcrito e o diálogo ficcional nem sequer pertencem à mesma categoria (ainda que o diálogo inventado, da ficção, ainda conte como um diálogo e possa ser uma fonte histórica de marcas da oralidade em tempos passados e regiões remotas). 

Diálogos transcritos tem sim o seu lugar. Em documentos de investigações criminosas e julgamentos, por exemplo, que podem aparecer ao publicar ebook de não ficção. Neste caso, cada detalhe pode ser relevante, pois a ideia não é entreter, e sim documentar os fatos com precisão.

Sabe o que acontece quando ouvimos uma gravação completa, sem edições, de uma fala não ensaiada? Nos entediamos. Perdemos o fio da meada. Ficamos de saco cheio e nem sequer entendemos tudo. Às vezes, chega ao ponto dessas marcas da oralidade chamarem mais atenção do que o discurso em si. “Meu deus, como essa pessoa é repetitiva, como ela se perde no meio do caminho. Quer parar de dar voltas e ir direto ao ponto?!”

Então, como encaixar a oralidade na ficção?

Ainda segundo Edgar W. Schneider, transcrição e ficção podem não pertencer à mesma categoria de diálogo, mas ambos ainda se classificam como diálogos. Isso sugere que um diálogo inventando, presente em uma obra de ficção, ainda conte como um diálogo e possa até mesmo servir como fonte de pesquisa, documentando a linguagem oral em determinado local, período, classe social, etc.

Em outras palavras, o diálogo de um livro ainda imita a oralidade e pode fazer isso muitíssimo bem. Mas, para ser um bom material de ficção, a intencionalidade do autor entra aí.

Um Youtuber edita seus vídeos para cortar repetições, redundâncias, falsos começos de frase, frases que saíram sem pé nem cabeça, esquecimentos. Essa edição não impede que o vídeo tenha um caráter coloquial, certo? Não precisa fazer com que o vídeo pareça uma dissertação acadêmica. Só torna ele mais fluído e agradável.

É mais ou menos por aí que pensamos na edição de um diálogo ficcional. Você deve eliminar aquilo que é redundante, inútil, cansativo e que atrapalha a comunicação com o leitor.

Lembre-se sempre que um diálogo ficcional envolve, sim, a interação de duas ou mais personagens, mas também a interação entre a obra e o leitor. Com esse diálogo, você tem a intenção de transmitir uma ideia, que pode ter a ver com os temas centrais do enredo, com o desenvolvimento das personagens, entre outros elementos da narrativa.

Não é só um diálogo que deve ser editado em um livro. No artigo Edite seu próprio livro: decidindo o que cortar na revisão, falamos sobre tudo que é supérfluo e pode ser cortado numa narrativa, e não é pouca coisa. Acreditamos que, em geral, o rascunho inicial de um ebook tem muito mais conteúdo que o necessário e que a leitura se torna muito mais fluída e agradável após essa etapa impiedosa da ficção.

O que sobra é tudo aquilo que contribui para a história, que contribui para a caracterização e desenvolvimento das personagens, que torna o livro mais vívido, mais imersivo, mais fluido.

As marcas da oralidade em um diálogo ficcional devem, sim, estar presentes. Os leitores notarão intuitivamente se um diálogo se assemelha à realidade ou não, pois mesmo a mais leiga das pessoas, desde que consiga se comunicar verbalmente, tem alguma experiência conversando. 

Mas, voltamos ao ponto: se antes do gravador de voz nós não éramos sequer capazes de notar o quanto o diálogo oral era cheio de hesitações e repetições e confusões, por que seria benéfico incluir tudo isso exaustivamente em uma obra de ficção?

A solução é simples: inclua marcas da oralidade, mas condense-as. Procure as marcas que são significativas para a caracterização de uma personagem ou para melhor representar o contexto do diálogo, e coloque-as em doses moderadas (se comparadas à experiência real de um diálogo).

Uma personagem pode, sim, hesitar muito ao falar. Mas o que mais interessa é o que isso diz sobre ela, e não a simples capacidade do autor de imitar o real. 

Certas marcas da oralidade, como hesitações e interrupções, podem representar um estado emocional exacerbado. Por exemplo: medo, incerteza, raiva, ansiedade.  Vocativos e formas de tratamento podem demonstrar o contexto da interação, assim como a relação entre duas personagens, seja de proximidade ou hierarquia. 

As marcas da oralidade podem mostrar a origem de uma personagem, seu contexto sociocultural e muito mais. Em resumo, elas representam quem a personagem é, como ela está se sentindo e com quem ela está falando.

Aqui, cabe mencionar que embora seja recomendável desenvolver um estilo de fala para cada personagem, como é comum que cada pessoa tenha um jeito próprio de falar, também é preciso lembrar que somos muitos em um só. Toda pessoa está acostumada a se adaptar a diferentes situações, algumas mais do que outras, e isso vale para personagens também.

A “corda-bamba” é conseguir demonstrar as múltiplas facetas de uma personagem, que pode ser mais formal em um contexto, mais coloquial em outro, às vezes mais confiante, às vezes mais insegura, sem parecer que sua caracterização é inconsistente.

Alguns autores utilizam a técnica de sinalizar essas mudanças de ambiente ou a capacidade de adaptação da personagem (ex.: com uma descrição do narrador ou uma reação de outra personagem, que nota a mudança no estilo de fala). Assim, até mesmo essas mudanças, que são tão comuns na fala real, também se tornam um recurso que deve ser usado intencionalmente.

Em níveis mais sutis, o contexto por si só pode informar essas variações. Por exemplo, é natural que sua personagem seja mais formal no trabalho e/ou na escola e mais informal entre amigos. Assim como em uma situação mais tensa, não é de se estranhar que ela perca a compostura. 

Ainda assim, pode caber uma reação de outra personagem caso a mudança seja muito brusca. Por exemplo, quando uma personagem fala um palavrão pela primeira vez.

Inclusive, certas marcas se tornaram tão comuns na ficção que basicamente criaram estereótipos, nos quais um determinado tipo de personagem (geralmente, um coadjuvante que não pode ser desenvolvido tão a fundo) fala de um determinado jeito. E assim, o leitor identifica rapidamente o que esperar de tal personagem. 

Esses estereótipos podem muitas vezes ser negativos (como abordamos no texto Personagens com sotaque: como escrever?), mas às vezes são apenas clichês ou tropes da escrita. A habilidade de identificar o que contribui ou não para o livro cabe ao autor, que pode usar esses recursos de acordo com as expectativas do leitor, para transmitir ideias implícitas sem precisar sempre descrever tudo em detalhes. Em termos gringos: show, don’t tell.

Achar o nível perfeito de verossimilhança nos diálogos ficcionais não é simples. Até os autores mais conceituados entre a crítica e a academia, que entraram para a história com sua capacidade de reproduzir a oralidade de forma vívida, podem desagradar um leitor qualquer. 

Não há nada de errado em ter preferências pessoais. É uma questão de estilo também. Alguns autores preferem um estilo um pouco mais afastado da realidade, outros preferem colocar o pé no chão mesmo que o resultado fique cheio de lama. E ambas as abordagens são válidas, podem ser bem-feitas, podem ser belas e grotescas de modo deliciosamente interessante.

E você, autor? Já sabe o que pensa sobre tudo isso? Conte-nos como é o diálogo perfeito para você. E lembre-se que a perfeição, no final, não existe.

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