Personagens com sotaque: como escrever?

A língua portuguesa cobre um território enorme e é cheia de sotaques, dialetos. Isso leva a uma série de embates, como a milenar batalha do biscoito e da bolacha. E, é claro, todo mundo acha que o seu português é o “correto”. Sotaque só existe quando é do outro, não é mesmo?

Não. Não é.

Se você é do tipo que acredita não ter sotaque, pode começar a rever seus conceitos. Todos temos sotaque. Cada região tem as suas particularidades na fala. A pronúncia e o vocabulário podem mudar de uma cidade para outra, ainda que dentro de um mesmo estado. O que observamos são diversas variantes linguísticas.

Então, como publicar ebook que transmite os sotaques únicos de cada personagem se toda personagem tem sotaque? É sobre isso que falaremos nas dicas de autopublicação de hoje.

O que define que um sotaque merece destaque e o outro não?

Quem nunca assistiu uma novela da Globo com personagens da roça? Ou o famoso “sotaque nordestino” que, na verdade, não é de lugar nenhum em específico?

Essas representações são frequentemente ofensivas, pois fazem uma caricatura de um determinado grupo que é visto como inferior, representando-o de forma estereotípica e que não condiz com a realidade.

Um dos principais problemas na escolha de demarcar um sotaque em uma obra de ficção é que essa escolha demonstra uma parcialidade. Isso se mostra ainda mais na escrita, pois o sotaque diz respeito à pronúncia, não à grafia das palavras.

Personagens com sotaque: como escrever?

Como publicado no Twitter da Turma da Mônica, até o Cebolinha é capaz de escrever “certo”.

Existe o português coloquial, que falamos no dia a dia e digitamos nas redes sociais, e a norma culta, que deve ser utilizada em situações formais e documentos. O acesso à educação garante que toda pessoa escolarizada possa transitar entre essas variantes linguísticas de acordo com a situação.

Tipicamente, quando escrevemos um livro, optamos pela norma padrão. É comum que livros de não ficção e narrativas sejam escritos no dito “português correto”. Isso não é uma regra, contudo. Ao menos na literatura, temos licença poética para escrevermos como bem entendemos. A linguagem poética permite o uso de coloquialismos, neologismos e muito mais.

Autores incríveis, como Guimarães Rosa e João Ubaldo Ribeiro, por vezes optam por escrever narrativas inteiras em uma linguagem coloquial, que remete à oralidade.  Essas narrativas são ricas e carregam em si a beleza da nossa cultura.

O que devemos olhar de forma crítica é o uso seletivo de sotaque e coloquialismo. Se uma narrativa é toda escrita de forma coloquial, tudo bem. Se a voz do narrador segue a norma padrão e a voz das personagens segue a oralidade, tudo bem também.

Mas por que em um mesmo livro uma personagem de São Paulo falaria sem marcas da oralidade e uma personagem nordestina teria tratamento diferente? São nessas ocasiões que observamos o preconceito.

A percepção do sotaque se dá de acordo com um referencial. Se um livro se passa na cidade de São Paulo, espera-se que a maioria das personagens tenha o sotaque paulistano. Nesse contexto, ao apresentar uma personagem que vêm de outra região, o narrador pode descrever a reação da personagem paulista ao ouvir um sotaque diferente.

Em ambos os casos, não é necessário fazer marcações fonéticas para indicar a forma que cada letra é pronunciada de acordo com o sotaque da personagem. Contudo, é interessante que todas as personagens usem o vocabulário de suas respectivas regiões.

Para aprender melhor sobre cada variante do português, nada melhor do que ouvir pessoas reais falando, ler os livros que elas escreveram e por aí vai.

Dicas para escrever personagens com sotaque

Até agora, nos concentramos em abordar os variados dialetos regionais do Brasil. Contudo, na Bibliomundi você tem a liberdade para publicar livro com personagens de qualquer lugar do mundo.

Confira algumas dicas para aprender como escrever diálogos realistas marcando o sotaque dessas personagens de forma sutil, sem exageros que dificultem a leitura e causem atrito entre os leitores:

Use gírias e regionalismos

Para que sua personagem fale de forma verossímil, é necessário que você se familiarize com as expressões típicas de cada região. Mas cuidado! Quando uma pessoa tenta usar gírias que não conhece bem, o resultado quase sempre fica forçado, como uma tentativa de parecer “legal”.

Procure ouvir as vozes de pessoas que se identificariam com a sua personagem. Todas as características importam: faixa etária, classe social, gênero, cidade onde cresceu, cidade onde mora atualmente, escolaridade e até mesmo a orientação sexual.

É óbvio que você não precisa conhecer uma cópia exata da sua personagem na vida real, mas levar em consideração esses fatores diversos terá um enorme impacto no resultado final.

Estruturas gramaticais de cada dialeto

Quando pensamos no padrão de fala de cada região, nos concentramos muito na pronúncia de determinadas letras e no vocabulário (ex.: biscoito vs bolacha). O que esquecemos é que, frequentemente, existem diferenças gramaticais também.

Em determinadas regiões do Brasil, por exemplo, o padrão é sempre usar o artigo antes do substantivo. “A Luana foi à escola.” Em outras regiões, por sua vez, fala-se “Luana foi à escola”, sem artigo. Essas pequenas variações fazem uma grande diferença.

Isso é ainda mais gritante quando estamos lidando com pessoas que vêm de diferentes países. Por exemplo, no inglês, o adjetivo vem antes do substantivo via de regra: “beautiful girl”. Da mesma forma, em inglês ao fazer uma pergunta, se inverte a ordem do verbo e do substantivo: “Are you ok?”

Se traduzíssemos ao pé da letra, o resultado seria uma fala enrijecida e pouco natural: “Está você bem?”. Parece ridículo, mas na verdade é comum que brasileiros que estão começando a aprender inglês cometam erros do tipo. O contrário também se aplica.

Ao escrever uma personagem estrangeira que está aprendendo português, trazer estruturas gramaticais do seu idioma nativo pode ser uma forma de demarcar seu sotaque.

Atenção: evite exageros! Todos somos capazes de nos adaptar e aprender novos idiomas. Use essa dica com moderação. Caso contrário, poderá criar uma caricatura ofensiva.

Palavras estrangeiras e falsos cognatos

Um dos recursos preferidos dos autores na hora de demarcar o sotaque de personagens estrangeiras é inserir palavras em outro idioma no meio da fala. Convenhamos que isso é um pouco estranho. Em geral, o padrão é nos comunicarmos em uma língua por vez.

Existem, sim, situações em que deixamos passar uma palavra em outro idioma. Por exemplo, quando não lembramos a palavra correta e não conseguimos explicar de jeito nenhum o que queremos dizer. Ou, por exemplo, quando a personagem está com raiva, muito sono ou até mesmo bêbada a ponto de confundir os idiomas. Se for uma expressão muito conhecida no país, como “home office”, também está okay.

Caso não se trate de uma dessas ocasiões, é provável que inserir uma palavra estrangeira do nada no diálogo soe apenas… estranho. E desnecessário. Como se você fizesse questão de pontuar que aquela personagem não pertence àquele contexto. Péssima ideia.

Uma alternativa interessante é explorar os falsos cognatos. Isto é, palavras que são parecidas em ambos os idiomas, mas cujo significado é diferente. Que brasileiro não fica confuso com o jeito que “push” significa “empurre” e “pull” significa “puxe” em inglês, não é mesmo?

Falsos cognatos podem levar a muitos mal entendidos. Alguns engraçados, outros só corriqueiros. Novamente, use com moderação.

Quer ver mais exemplos na prática de como sotaques podem ser usados na ficção? Dê uma olhada neste vídeo do canal Ficçomos, da autora brasileira Wlange Keindé:

Por que incluir sotaque e outras marcas da oralidade na sua narrativa?

Existem diversos recursos para você trazer as marcas da oralidade para o seu texto escrito, demarcando o dialeto de cada personagem de forma notável. Contudo, não é porque esses recursos existem que você sempre deve usá-los.

É importante levar em consideração o que esses recursos adicionam à sua história.

A sua narrativa vai ser enriquecida por um texto com muitas marcas da pronúncia oral? Ou vai ficar cansativa?

Se sua personagem sempre confunde as palavras de um idioma para o outro, isso cria situações interessantes para o seu enredo ou só um pouco engraçadas? Seu livro precisa de alívio cômico?

Por que você quer demarcar o sotaque de uma personagem em específico? O que isso diz sobre ela?

Às vezes, menos é mais. Encontrar um equilíbrio é fundamental.

E aí, autor? Qual sua opinião sobre marcar o sotaque das personagens na escrita? Deixe seu comentário!

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