O que é a atmosfera na narrativa?

A atmosfera é, talvez, a peça-chave que determina o impacto de uma obra de ficção na vida do leitor. Como dizem, um leitor pode se esquecer de um enredo, mas não das emoções que uma narrativa o fez sentir. Atmosfera é, acima de tudo, sobre emoção.

O termo “atmosfera”, no contexto da narrativa, está relacionado ao tom, o clima, a ambientação de uma história. Inclusive, pode ser um pouco difícil separar uma coisa da outra, pois estão todas intimamente conectadas na tarefa de criar uma experiência única para o leitor.

Pode-se dizer que o tom ou clima da narrativa se referem ao tipo de emoção e sensação que você deseja provocar no leitor. A ambientação tem a ver com o contexto e o cenário da história (para saber mais, leia o artigo Ambientação: construindo o cenário para seu livro de ficção).

A atmosfera é uma mistura desses elementos que leva o leitor a imaginar uma experiência multissensorial ao ler sua história.

De certa forma, a atmosfera de uma história tem a ver com os gatilhos que ela ativa no leitor. Não falamos de “gatilho” de forma negativa, mas em termos de conexões implícitas que são ativadas no cérebro do leitor.

Uma história pode ter uma atmosfera nostálgica, que mistura o conforto do conhecido com a saudade do passado. Outra história, por sua vez, pode ter uma atmosfera que remove o leitor da sua zona de conforto e o envolve em uma sensação de estranheza e medo do desconhecido.

Esses gatilhos mentais também estão relacionados aos gêneros literários. Nem só de clichês narrativos são feitos os gêneros. A atmosfera também conta muito, pois ela representa as sensações específicas que cada categoria tende a provocar em seus leitores.

O que as comédias românticas têm em comum entre si? Não é apenas a história centrada no amor, mas um certo clima que une a vontade de se apaixonar com a comicidade dos desencontros. Em geral, quem procura comédias românticas está em busca de uma sensação de quentinho no coração e de boas risadas.

Da mesma forma, quem é aficionado por histórias de terror e suspense provavelmente gosta da adrenalina que esses gêneros provocam. E a diferença entre um terror com cenas de violência gore e um mistério aconchegante estão em grande parte na atmosfera também. O próprio nome já diz: um é aconchegante, o outro é grotesco!

É importante ressaltar que não existe um certo ou errado universal quando se trata da melhor atmosfera para uma narrativa. Nas nossas dicas de autopublicação, sempre falamos para você pensar no que o seu livro precisa, mas neste caso, é também muito importante pensar no seu leitor ideal antes de publicar ebook.

Pense assim, cada história é capaz de provocar uma sensação específica que fica guardada no coração e na memória do leitor. O seu leitor ideal é aquele que está procurando essa sensação (ou que precisava senti-la, mesmo sem saber).

Isso envolve dois fatores:

1.      O gênero que o seu leitor gosta e costuma ler, pois é normal que um leitor procure viver as sensações que lhe são agradáveis (e há gosto para tudo!)

2.      O momento emocional que o leitor está vivenciando, pois o livro favorito de uma pessoa hoje e daqui a dez anos pode mudar muito

Já explicamos a correlação entre a atmosfera e o gênero, mas e esse tal de momento emocional? O que é isso?

Para exemplificar, se uma pessoa acabou de terminar um relacionamento amoroso, a tendência é que ela procure um tipo de ficção específica para dialogar com esse momento. Algumas pessoas vão procurar comédias para distrair a cabeça, outras vão querer uma obra que fale exatamente sobre a experiência que estão vivendo.

As possibilidades são infinitas, pois cada pessoa é única. E é exatamente por isso que você não deve tentar abraçar o mundo na hora de publicar livro, querendo agradar todo tipo de leitor. O seu leitor ideal é aquele que, em determinado momento, vai encontrar as sensações almejadas no seu livro.

Como imaginar uma atmosfera para meu livro?

A princípio, quando falamos da atmosfera de uma obra de ficção que nem existe ainda, pode parecer tudo abstrato demais. Como se você tivesse que escrever primeiro para descobrir a atmosfera depois… Mas não precisa ser bem assim. Podemos ajudar você a viver uma experiência multissensorial imaginária.

Primeiro, pense em um lugar que você conhece. Por exemplo, o colégio onde você estudou no ensino médio.

·       Como esse lugar fazia você se sentir? Tente encontrar o espaço psicológico que esse colégio representa para você. As suas emoções em relação aos colegas de classe, em relação aos professores, os tipos de memória afetiva (ou traumática) que você construiu nesse lugar.

·       Como outras pessoas pareciam se sentir nesse lugar? A atmosfera é guiada pela perspectiva do “eu”, mas não se limita somente ao “eu”. Vivemos em sociedade e percebemos outras pessoas. Portanto, tente se lembrar dos outros. Os alunos pareciam se dar bem entre si? Havia um clima amistoso? Ou era um clima mais sério? Como os professores tratavam os alunos? Havia tratamento diferenciado para alunos diferentes?

Agora, combine com as suas lembranças sensoriais:

·       Como era o clima nesse lugar, em termos de tempo mesmo? Era frio? Ou era quente? Era úmido? Ou era seco? Descreva a sensação na sua pele ao ir para o colégio, ao assistir às aulas, durante o intervalo, etc.

·       Como era a aparência do colégio? O prédio era novo ou antigo? Estava em bom estado ou havia problemas na infraestrutura? Qual era o estilo da arquitetura: mais modernista e cheia de ângulos retos, ou mais arredondada? E as cores das paredes? O colégio era todo um único prédio ou era um terreno com várias construções? Era um colégio grande ou pequeno?

·       E o cheiro, como era? Lembre-se do cheiro das salas de aula, dos banheiros, da cantina, da diretoria. Havia algum cheiro peculiar e marcante? Ou era tudo um grande cheiro de nada? Mesmo as informações mais comuns, como dizer que o banheiro às vezes fedia e às vezes cheirava a desinfetante, ainda são relevantes para a construção da atmosfera.

·       Quais eram os sons que você ouvia no colégio? Os alunos falavam muito durante as aulas? E nos intervalos? Que tipo de som você ouviria caso se atrasasse para a aula ou fosse para a detenção? O colégio tinha algum alarme ou sino específico? Tocava algum tipo de música no ambiente? Havia som de animais ao redor? E os prédios vizinhos, faziam barulho? Tanto os momentos barulhentos quanto os momentos de silêncio são relevantes.

·        Que tipo de refeição você fazia no colégio? Havia uma cantina que oferecia pratos de comida ou só lanches? Como era sua alimentação nessa época? Havia algum prato que você adorava? Ou quem sabe algo que o causava repulsa? E qual era o lanche que você mais costumava comer, fosse bom ou ruim?

Na ausência de algum sentido, como no caso de pessoas com alguma deficiência sensorial, você também pode pensar em como essa ausência marcava a sua experiência ou tentar compreender como outras pessoas experienciavam a presença desse sentido naquele ambiente. Tudo depende da perspectiva que você busca explorar em sua narrativa.

A combinação de todos esses elementos é o ponto de partida para montar uma atmosfera em sua mente. Fizemos esse exercício com seu colégio, mas pode ser qualquer lugar, inclusive um lugar imaginário.

Comece com uma sensação e vá explorando os outros sentidos a partir daí. Pode ser qualquer uma, não há ordem certa. O que vier primeiro está bom.

Para algumas pessoas, é mais fácil se guiar pelo sentimento: tente imaginar um lugar triste, tente imaginar um lugar assustador. Sem dúvidas, essa é uma forma bem eficaz de ficar dentro do tema se você já sabe qual gênero quer escrever. Afinal, cada gênero tende a ter um tom específico, provocar emoções específicas.

Para outras, a visão pode ser o ponto de partida mais fácil. Dependendo do gênero, podem existir os locais – ou até as épocas – padrão para se ambientar uma história.

O encontro fatídico em 101 Dálmatas ocorre num parque, onde as guias dos cachorros se entrelaçam durante um passeio. Várias séries de comédia tem como cenário principal um apartamento onde moram os protagonistas ou o local de trabalho onde eles se encontram. Dramas adolescentes costumam se passar em um colégio.

Os outros sentidos podem ser um pouco menos comuns, mas também têm seu lugar no processo criativo.

Por exemplo, a audição pode representar tanto uma música que lembre a sua história quanto o som característico de um ambiente: uma casa no campo e um apartamento na cidade terão sons ambientes distintos.

O cheiro de uma clínica ou de um hospital tende a ser bem marcante. O mesmo vale para a casa de uma pessoa que acumula lixo. E existem também pessoas que são obrigadas a morar em frente a rios poluídos. Todos são cheiros bem distintos, que podem atravessar uma narrativa.

O vocabulário também determina a atmosfera

Até agora, falamos muito das experiências sensoriais e na construção imaginária da atmosfera, mas e como transmitir tudo isso para o seu leitor? Sim, é claro, descrever esses sentidos e perspectivas por si só já contribui um tanto, mas não para por aí.

A escrita literária não vai ser sempre uniforme e direta. Para dar certa emoção à coisa, a escolha de palavras também é importante. Isso não significa, no entanto, que você é obrigado a florear sua escrita para provocar emoções. Já falamos, menos é mais.

O que interessa aqui é entender que todo estilo de escrita transmitirá alguma coisa ao leitor. Se a sua escrita é curta e grossa, isso, por si só, já é algum tipo de mensagem. Talvez caiba pensar: em quais momentos eu quero ser curto e grosso? Em quais momentos eu quero ser mais detalhista?

Até mesmo a pontuação de uma frase tem um certo impacto. Frases curtas e simétricas definem um ritmo marcado como um tic-toc. Frases compridas podem criar uma sensação de exasperação, como se não houvesse espaço para pausar e respirar.

As repetições também podem contribuir para o ritmo e dar ênfase. Se uma mesma palavra aparece muitas vezes em um parágrafo, ela tende a ganhar importância simbólica.

É sempre importante ressaltar que tudo isso deve ser feito com intenção. Se você repetir demais uma palavra que não tem valor simbólico, o resultado será o mesmo que apontar o holofote para um elemento redundante. Em outras palavras, vai realçar os problemas na sua narrativa.

Inspiração: a atmosfera de horror e estranheza em H.P. Lovecraft

H.P. Lovecraft foi, possivelmente, um dos autores mais preocupados com a construção de uma atmosfera em suas narrativas. Suas obras pouco se focam nas personagens, concentrando-se principalmente nos cenários e nas figuras cósmicas que aterrorizam a humanidade com sua estranheza elusiva.

Só para você sentir um gostinho, leia o primeiro parágrafo do conto O Horror De Dunwich:

QUANDO ALGUÉM QUE viaja pelo centro-norte de Massachussets pega o caminho errado no cruzamento da rodovia de Aylesbury logo após passar por Dean’s Corners, depara-se com uma região isolada e curiosa. O relevo torna-se mais montanhoso e os paredões de pedras cobertos por roseiras-bravas estreitam cada vez mais a estrada sinuosa e poeirenta. As árvores das numerosas matas parecem grandes demais, e as ervas daninhas, as amoreiras silvestres e o capim atingem uma exuberância raramente encontrada em regiões povoadas. Ao mesmo tempo, há poucos e improdutivos campos cultivados e somente algumas casas esparsas, que se revestem de um surpreendente aspecto uniforme de antigüidade, imundície e ruína. Sem saber por que, hesitamos em pedir informações às enrugadas e solitárias figuras entrevistas, uma vez ou outra, nas soleiras das portas caindo aos pedaços ou nas campinas em declive cobertas de pedras. Essas figuras são tão silenciosas e furtivas que temos uma certa sensação de estarmos confrontando-nos com coisas proibidas, com as quais seria melhor não termos a menor ligação. Quando um aclive na estrada traz à vista as montanhas por sobre a mata densa, aumenta a sensação de estranha inquietude. Os cumes são arredondados e simétricos demais para suscitar conforto e naturalidade, e, às vezes, o céu delineia com especial clareza os bizarros círculos de altos pilares de pedra com os quais a maioria deles é coroada. – (LOVECRAFT, 1929).

 

E aí, autor? Já captou a atmosfera do seu próximo livro?

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *