O papel da alegoria na ficção

Nas nossas dicas de autopublicação desta segunda-feira, falamos sobre como escrever uma distopia e, é claro, surgiu o tema da alegoria na ficção. Isto é, quando a narrativa atua como uma metáfora, quando o enredo é um símbolo que representa uma questão importante, às vezes até mesmo um evento histórico. Trata-se de um recurso muito útil e presente na ficção desde os seus primórdios e que permanece até hoje.

Quando uma obra de ficção é alegórica, significa que ela tem no mínimo dois níveis de compreensão. O primeiro é o “texto”, aquilo que é dito de maneira literal. O segundo é o “subtexto”, é o significado escondido por trás do enredo, a mensagem que o autor quis passar.

A alegoria em si também pode ser dividida em dois tipos. Em um deles, o autor se concentra em um evento histórico (ex.: o holocausto) e, em geral, cada elemento da narrativa pode ser traçado de volta ao evento que a inspirou. O outro tipo é mais abrangente. Nele, o autor deseja transmitir uma ideia que é relevante para a nossa realidade através de um cenário fictício, sem necessariamente se inspirar em um evento específico.

No primeiro modelo, podemos pensar na peça As Bruxas de Salem, escrita por Arthur Miller em 1953. A primeira vista, trata-se de uma obra de ficção que retrata a caça às bruxas em uma sociedade puritana, evento que de fato aconteceu nos Estados Unidos. Prestando atenção, contudo, pode-se notar que a peça é uma alegoria para a perseguição aos comunistas promovida pelo senador Joseph McCarthy.

É possível afirmar que Arthur Miller visava criticar essa perseguição e a histeria coletiva a qual ela levou a sociedade onde vivia. A alegoria coube muito bem, pois além de evitar que ele fosse condenado como comunista, conseguia transmitir com eficácia a mensagem desejada.

Como você pode observar, a mensagem que a alegoria carrega pode ser, e muitas vezes é, um ensinamento, uma lição de moral. Sob esse ponto de vista, as fábulas e diversos contos de fadas podem ser considerados alegorias do segundo tipo, que trazem uma mensagem relevante para a vida real, mas não inspirada em um evento histórico específico.

Por exemplo, podemos interpretar Chapeuzinho Vermelho como uma alegoria para o abuso de crianças. O ensinamento é de que devemos tomar cuidado com estranhos e estradas duvidosas.

Como escrever uma alegoria?

Muito bem, você já sabe o que é uma alegoria, mas como escrevê-la? Verdade seja dita, às vezes a alegoria se faz sozinha com uma mensagem presa no inconsciente do autor. Contudo, hoje estamos pensando em esforços propositais. Nesse caso, o primeiro passo é decidir qual mensagem você quer passar.

Como já mencionamos no artigo sobre distopia, é interessante que o tema seja algo relevante para o público. Isso não significa que você precise falar de políticas atuais ou notícias recentes, como Arthur Miller fez em sua peça. Qualquer assunto com o qual seus leitores consigam se identificar é válido.

O medidor mais simples e sincero para a relevância de um tema é o quanto você se importa com ele. Se nem o autor se importa com o que está escrevendo, como você poderia esperar que o leitor se importasse? Por isso, pergunte a si mesmo:

  1. Eu quero expressar minha opinião sobre algum tema? Se sim, qual tema? (Ex.: egoísmo na natureza humana)
  2. Tem algum evento histórico específico sobre o qual eu queira falar? (Ex.: revolução russa)
  3. Tem alguma causa ou problema social que me interessa? (Ex.: desigualdade social)

Encontre nessas perguntas a resposta mais relevante para você e siga a partir daí. A seguir, você deve definir uma tese. Veja bem, “desigualdade social” é um tema. É um assunto. Você pode debater sobre ele. Contudo, para ser uma tese, é preciso uma opinião definida. Novamente, você deve se questionar, mas agora é hora de dar respostas longas, escreva o quanto conseguir sobre o assunto.

Algumas sugestões de perguntas são:

  1. O que você pensa sobre o tema escolhido, em geral?
  2. O que você acha que é a causa do tema? (Ex.: a causa do egoísmo humano; a causa da desigualdade social; o que levou a revolução russa a acontecer)
  3. Se o seu tema é um problema, é possível resolvê-lo? E como? (Obs.: dependendo do tema, pode ser possível prevenir o problema, mas não remediá-lo. Neste caso, a alegoria pode ser um exemplo do que não fazer.)

Com isso, você provavelmente já sabe o que quer dizer em seu livro. O próximo passo é descobrir como você vai transmitir essa mensagem. Quais são elementos importantes do seu tema? Faça um resumo de tudo o que deseja incluir no seu livro. Caso o seu tema seja um evento histórico, essa tarefa não será muito difícil. Basta fazer sua pesquisa antes de escrever o livro e delimitar quais figuras históricas foram importantes, entre outras informações.

Fez o resumo? Então é hora de encontrar paralelos. Quais símbolos você pode utilizar para representar seu tema? É bem comum o uso de cenários fantásticos ou futuristas em obras alegóricas, por exemplo, pois eles naturalmente se distanciam da nossa realidade. Contudo, também é possível escrever alegorias realistas, vide As Bruxas de Salem!

Em seguida, você transformará sua mensagem em um enredo. Aqui podemos chegar a algumas divergências sobre o método mais apropriado. Alguns autores preferem planejar o enredo detalhadamente antes de escrever, outros preferem deixar rolar.

Caso você goste de planejar tudo, dê uma olhada no artigo que escrevemos sobre o método snowflake e cubing. Para dar uma ideia, no método snowflake você começa com uma descrição simples do livro e a expande por etapas. Primeiro, você faz uma frase. Depois, transforma a frase em um parágrafo. Então, o parágrafo vira uma página e por aí vai.

Ainda que o planejamento não seja sua praia, para publicar livro alegórico, é uma boa ideia pelo menos fazer algumas anotações básicas, estabelecendo correlações entre o seu tema e os símbolos que você utiliza para representá-lo.

Dificuldades da alegoria

Publicar ebook alegórico não é simples. Ao escrever uma alegoria, você trabalha com dois níveis narrativos ao mesmo tempo, e precisa garantir que ambos façam sentido e sejam compreensíveis. Por isso, é importante fazer uma boa pesquisa e aprofundamento do tema desejado, anotar tudo em detalhes e, na hora de escrever e revisar, prestar atenção em dois elementos:

  • Coerência entre os dois níveis narrativos – O seu livro transmite a mensagem desejada? Garanta que a sua tese não se perdeu no meio do caminho.
  • Capacidade de compreensão da alegoria – Os seus leitores vão entender sua mensagem? Deixe algumas dicas e fortaleça o simbolismo caso necessário.

Existe sempre a possibilidade do leitor discordar da sua tese ou simplesmente achar sua alegoria inapropriada. Por exemplo, a franquia X-Men é frequentemente lida como uma alegoria para a opressão das minorias, como as pessoas negras e LGBT+, mas nem todo mundo está contente com isso.

Muitas pessoas que fazem parte dessas minorias consideram injusta a comparação entre eles e os mutantes. A verdade é que os mutantes são poderosos e, com isso, potencialmente perigosos. Inclusive, nos quadrinhos já foi afirmado que o objetivo dos X-Men é proteger a humanidade de “mutantes malignos”.

Na vida real, as minorias se consideram oprimidas e sem poder para ameaçar a maioria, o que torna injusta a comparação com um grupo fictício que detém poder, por mais que esse grupo também seja marginalizado.

Em outras palavras, algumas alegorias são recebidas pelo público como falsa simetrias. Como qualquer outra obra, elas estão sujeitas à críticas. Isso não deve impedir a liberdade criativa de ninguém, mas é uma boa ideia bancar o advogado do diabo e procurar problemas na sua própria tese para garantir que ela é mesmo sólida. Se ainda concordar consigo mesmo ao fim desse exercício, vai se sentir muito mais satisfeito com seu livro.

E aí, autor? Quais são suas alegorias preferida? Não nos esquecemos dos clássicos de George Orwell! Compartilhe aqui sua resposta.

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