O mês das mulheres é especial para a Bibliomundi. Depois da campanha #elasocupambibliomundi, queremos aproveitar o momento para trazer à tona discussões sobre o lugar da mulher na literatura e no mercado editorial. A série de artigos começa com um não bem necessário: não existe “literatura feminina”.
Quando vamos a uma livraria, os livros de autoras mulheres costumam ser destacados como produtos de uma categoria a parte, muito diferentes dos demais. Sejam livros de ficção ou não ficção, é como se o fato de serem escritos por mulheres já demarcasse um gênero literário por si só: “literatura feminina”. A impressão é que mulheres só refletem e pesquisam sobre temas específicos às mulheres e semelhantes entre si.
Agora, se a ideia é que esses são os livros de mulheres para mulheres, por que os livros escritos por e para homens também não tem sua categoria própria? Por que o que é feito por homens é o padrão “normal”, mas a autoria de mulheres merece toda uma categoria própria?
De certa forma, é porque mulheres ainda são vistas como café com leite no mundo literário. É um aceno para a velha mentalidade dos homens debatendo “assuntos sérios” em uma mesa enquanto as mulheres ficam no segundo plano.
Não estamos exagerando ao dizer isso. Só nas categorias mistério e suspense, por exemplo, já existem subgêneros criados pura e simplesmente para assinalar que a obra é “feminina”. É o caso dos “domestic thrillers”, “chick noir” e por aí vai.
Estatisticamente, quanto mais mulheres publicam em um gênero, mais baratos serão os livros desse gênero. Aliás, ainda que sejam livros de um mesmo gênero, os livros de autoras mulheres ainda são aproximadamente 9% mais baratos (fonte: QUARTZ/DAN KOPF).
O cenário editorial ainda é dominado por homens. A maioria dos autores são homens, a maioria das figuras de renome são homens. A disparidade é ainda maior nos gêneros de não ficção. Ciências sociais, economia, pensamento contemporâneo, política, filosofia… Pode testar pesquisando em qualquer livraria física ou digital: todas são categorias com predomínio masculino.
A verdade é que homens são vistos como mais práticos e racionais, enquanto as mulheres são vistas como emotivas. E, assim, são designados papéis. Tudo o que a mulher escreve é visto como uma obra dos sentimentos, da imaginação solta, enquanto os homens podem se ater a assuntos “importantes de verdade” e serem levados a sério.
Quando pensamos em mulheres escrevendo não ficção, os primeiros nomes que vêm à cabeça são de autoras que escrevem sobre gênero, como a filósofa Angela Davis. Esses livros são relevantes e refletem sobre sua experiência no mundo, assim como têm embasamento em estudos acadêmicos. Contudo, caem mais uma vez na categoria da “literatura feminina”.
A literatura feita por mulheres sempre existiu. O que falta é reconhecimento e igualdade de exposição, tratamento e publicação.
Basta olhar para a ficção científica. Embora apenas 21% dos autores de Sci-Fi mencionados na lista de best-sellers do NY Times sejam mulheres, o gênero em si foi criado por uma mulher. Mary Shelley, ao publicar Frankenstein, criou uma história tão inovadora que deu origem ao conceito “ficção científica” e desenvolveu todo um novo subgênero para o terror. Sem contar que seu monstro está vivíssimo na cultura pop até hoje.
Fora da ficção, a modernista Virginia Woolf tinha um compromisso com a voz das mulheres. Vivendo na pele as restrições do seu gênero, ao não ter acesso à educação que seus irmãos homens tiveram só por ser mulher, observando como o meio acadêmico e a literatura em si eram dominados por homens, Woolf tomou como uma missão pessoal buscar uma ancestralidade de autoras mulheres. Autoras que foram apagadas pelo tempo. Elas sempre existiram.
E quanto ao que é uma “literatura feminina”… pode-se dizer que é, simplesmente, qualquer literatura escrita por mulheres. E isso não precisa ter uma conotação negativa. Muito menos deve ser limitador. Podemos escrever sobre qualquer assunto. Podemos nos especializar em qualquer gênero. Não há nada nas palavras das mulheres que seja inferior às dos homens.
Enquanto os temas que interessam mulheres em geral são considerados inferiores apenas por esse motivo, é normalizado que homens tenham interesses próprios. Uma mulher falar da experiência de outras mulheres merece um rótulo de “literatura feminina”. No entanto, ninguém se lembra de mencionar que a maioria das biografias escritas por homens são sobre outros homens. Isso é tido como normal.
Não é irracional que, em um meio dominado por autores homens que negligenciam as experiências das mulheres, quando uma mulher se torna autora, ela tenha interesse em falar sobre tais experiências. Afinal, se ela não falar, ninguém mais falará.
Se os livros que abordam experiências e interesses comuns aos homens são apenas “livros”, por que os livros que abordam experiências e interesses comuns às mulheres merecem toda uma categoria à parte? Eis a questão.
E, ainda que existam certos padrões, em muito o que essa categorização retrata são estereótipos. Isto é, apenas uma imagem pré-estabelecida pelo senso comum, que não necessariamente reflete a realidade de cada indivíduo.
Sempre existirão mulheres interessadas em assuntos tipicamente “masculinos”. Sempre existirão homens interessados em assuntos tipicamente “femininos”. É algo tão simples quanto entender que meninas também podem usar azul e brincar de carrinho e vice-versa.
É como entender que a ficção-científica, queridinha dos geeks (ou nerds, como preferir), foi criada por uma mulher e tem uma enorme quantidade de fãs mulheres. Ainda que uma visão machista impere nesse nicho, reconhecer que mulheres também fazem parte dele é um imperativo.
Podemos escrever romances. Podemos escrever não ficção. Podemos escrever histórias de amor e histórias de horror. Podemos escrever tudo o que quisermos. E continuaremos na luta.
Mulher nenhuma precisa se encaixar numa caixinha. É limitador demais. E, se tudo o que você faz for menosprezado por ser “coisa de mulherzinha”. Bem… Pergunte desde quando “mulher” é xingamento.
O mundo não mudará de uma hora para outra, mas o que podemos fazer é continuar marcando presença. Mulheres, escrevam. Escrevam seus próprios livros e escrevam sobre os livros de outras mulheres. Não deixe que suas vozes sumam na multidão.
Como sempre falamos… você pode ser a best-seller de amanhã.