Minha personagem é perfeitinha demais?

Nas dicas de autopublicação de semana passada, o artigo Falha da personagem, acerto do autor: escrevendo personagens que movem o enredo explicou como os defeitos de uma personagem podem não só a tornarem mais interessante, como também contribuir positivamente para uma história.

A verdade é que a forma com que julgamos personagens não é a mesma com a qual  julgamos pessoas. Quando avaliamos o que é bom e o que é ruim em uma personagem, o fazemos sob um ponto de vista narrativo. Na vida real, podemos até admirar as pessoas que parecem tão perfeitas quanto humanamente possível. Já nos livros, não é bem assim.

Do que adianta publicar livro com um protagonista que tem todas as qualidades do mundo se ele não for interessante para a história, não é mesmo?

Tendo isso em mente, há décadas atrás surgiu um termo chamado “Mary Sue”. Em poucas palavras, se refere a personagens que são perfeitinhas demais. E pronto. Sem defeitos. Sem qualquer possibilidade de erro. Tão perfeitas que elas não precisam nem se esforçar. Do tipo que você jura que chega a “soltar gases cheirosos”, por assim dizer.

O termo teve sua origem no meio das fanfics (obras de ficção sem fins lucrativos baseadas em histórias já consagradas), onde constantemente ocorre o seguinte fenômeno:

  • Uma fã quer se imaginar como parte de um universo fictício
  • Essa fã cria uma personagem original que a representa, uma self insert através da qual ela pode viver suas fantasias
  • Essa personagem tem todas as qualidades possíveis e nenhum defeito, mas ela permanece humilde
  • Não há ninguém tão excepcional quanto essa personagem, sua aparência e habilidades se destacam entre os demais
  • Essa personagem se torna o centro desse universo fictício, todas as personagens a amam e toda a história gira em torno dela

É importante ressaltar que não existem apenas personagens femininas que se enquadram nesse padrão, da mesma forma que não são apenas mulheres que escrevem dessa forma. Contudo, a origem do termo é essa. Sua contraparte masculina foi apelidada de “Gary Stu”.

O termo cresceu de tal forma que, hoje em dia, é utilizado também na análise de obras originais. E assim, a preocupação: a minha personagem principal é uma Mary Sue? Como eu posso evitar isso? O primeiro passo é aprender a identificar uma Mary Sue.

As características de uma personagem Mary Sue

Personagens Mary Sue não são apenas perfeitinhas e/ou super poderosas. Para uma personagem ser categorizada dessa forma, ela deve apresentar um conjunto de características que a tornam inverossímil e muito, muito entediante. Para ser considerada uma Mary Sue, sua personagem deve…

1.      Ter qualidades absurdas, que ninguém mais possui nesse universo

A Mary Sue tipicamente é a “escolhida”. Ela é belíssima e provavelmente tem alguma característica física incomum, como olhos de uma cor peculiar. Suas habilidades são superiores às dos outros e ela as adquiriu sem o menor esforço.

2.      Ser isenta de defeitos

Uma Mary Sue não erra de verdade. Na escala de defeitos que apresentamos semana passada, ela tem somente defeitos insignificantes, que não a prejudicam em nada. Por exemplo, ela pode ser ruim de matemática ou desastrada, mas de um jeito fofo.

3.      Supera todos os “desafios” sem problemas

A Mary Sue precisa adquirir uma nova habilidade? Sem problemas, ela consegue. Na verdade, não existem desafios reais para uma Mary Sue porque ela é perfeita. Tudo o que ela se propõe a fazer, ela consegue. Existe um mistério que é estudado há séculos por especialistas e ninguém nunca o desvendou? Envie a Mary Sue e ela o solucionará em segundos! Porque o mundo é justo assim.

4.      Ser amada por todos

Uma Mary Sue é o centro do universo. Todos a notam e são atraídos por ela em algum nível. Se alguém não gosta dela, essa pessoa deve ser um vilão terrível e o motivo para esse ódio deve ser algo esdrúxulo. Por exemplo, inveja. Ou odiar só por odiar. Por exemplo: “Você faz o bem e eu quero eliminar todas as pessoas boas do mundo!”.

5.      Ela é humilde e gentil

Mesmo sendo linda, habilidosa, isenta de defeitos e amada por todos… a Mary Sue não se vê dessa forma! Ela é humilde. Se você elogiá-la, ela vai dizer que é um exagero. Quando ela se olha no espelho, não enxerga tudo isso. Ela acha que é apenas uma pessoa normal. E é gentil. Seu coração é de ouro.

Em resumo, essas são as principais características de uma Mary Sue. Contudo, uma personagem não precisa ser exatamente como descrevemos para ser considerada uma Mary Sue.

A personagem Bella Swan, de Crepúsculo, é um dos exemplos mais comuns de Mary Sue, por exemplo. Podemos argumentar que Bella não tem características tão marcantes assim. Um dos rótulos mais comuns para ela é “sem graça”, na verdade. Contudo, ela ainda:

  1. É a única pessoa do universo imune aos poderes do vampiro Edward
  2. Não apresenta nenhum defeito maior ou trágico.
  3. Seu maior “defeito” e desafio é apenas amar um vampiro sendo uma mortal
  4. É basicamente amada por todos, exceto os vilões
  5. É humilde e não se vê como essa garota cativante e bonita, mas ainda assim é vista dessa forma pelas outras personagens

Outras personagens que são frequentemente rotuladas como Mary Sues/Gary Stus são Harry Potter e Luke Skywalker. Em geral, se uma personagem é “A Escolhida”, tem habilidades incríveis inatas e o mundo gira em torno dela, pelo menos parte do público a considerará uma Mary Sue.

O que precisamos nos lembrar é de que algumas dessas características são simplesmente normais e fazem sentido para os protagonistas de determinadas histórias. Não há nada inerentemente errado em escrever uma narrativa que gira em torno de uma personagem escolhida. Tudo bem essa personagem ter alguma característica única, inata, que a torna diferente dos outros.

O problema é quando o autor elimina toda a subjetividade dessa personagem, tudo que a torna humana, para deixá-la perfeitinha demais. Mesmo uma personagem escolhida deve ter seus defeitos e seus desafios. Ninguém é obrigado a gostar dela também, nem mesmo as outras personagens.

Uma personagem que carrega o mundo nas costas pode ter o enorme defeito de se sentir sobrecarregada por essa responsabilidade e fugir dela às vezes, causando o sofrimento de outras pessoas. Ou ela pode ser dominada pela soberba, a hubris, e pagar um preço fatal.

Ela pode ser muito boa em algo, mas ainda precisar se esforçar para superar seus objetivos. Ela pode ter traumas e problemas pessoais sérios. Existem mil formas diferentes de equilibrar uma personagem que potencialmente poderia ser perfeitinha demais. O que define se uma personagem é ou não uma Mary Sue é justamente a falta de equilíbrio.

Não tenha medo demais de criar uma Mary Sue ao publicar ebook. Afinal, seu protagonista ter uma ou outra dessas características faz parte, pelo menos em alguns gêneros da ficção. Basta equilibrar as qualidades com alguns defeitos para que sua personagem seja verossímil e enfrente desafios reais, que movem a narrativa e ajudam a criar suspense em uma história.

É essencial também que você sempre submeta suas personagens masculinas e femininas ao mesmo tipo de crítica. Falamos uma vez e repetiremos: personagens masculinas também podem ser perfeitinhas demais. Autores homens também podem querer criar uma personagem idealizada que represente toda a grandeza que desejam para si. Personagens que não fazem nada para merecer tudo o que conquistam.

Mary Sues e Gary Stus existem porque são convenientes demais. Eles representam nossas fantasias. Nosso desejo de viver uma vida em que não precisamos nos sentir culpados por nossos defeitos, onde não precisamos lutar tanto para superar nossos desafios. Uma vida onde tudo é mais fácil e somos amados por todos.

Nossas personagens também são um pouco como nossas filhas. Às vezes pode ser difícil fazê-las sofrer ou aceitar que elas podem ter defeitos. É uma sensação comum, com a qual muitos escritores se identificam.

A questão é que errar é humano. E quando criamos personagens com características humanas, elas se tornam mais reais. Seus leitores são capazes de perdoar seus erros, seus defeitos. Talvez até mais do que o fariam se sua personagem fosse humana de fato. Na ficção, estamos dispostos a perdoar até homicídio caso o culpado seja carismático o suficiente.

Por isso, não se preocupe. Aceite esses defeitos. Entenda o papel que eles têm na sua história. E crie personagens sinceros, verossímeis, reais.

5 Comentários

  1. Daniel Guindani

    “A perfeição da humanidade está na imperfeição” D. R. Guindani

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  2. LINDINALVA DA SILVA FERREIRA

    Essa materia explodiu a minha mente, me fez perceber que meus personagens (do livro que estou escrevendo) principalmente os masculinos sao todos perfeitinhos de uma maneira tao discarada que nem sei como nao me toquei.

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    1. Redação

      Ficamos felizes em saber que te ajudamos Lindinalva. E estamos ansiosos para ver seu livro publicado!

      Responder

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