A liberdade criativa na ficção deve ter limites?      

A liberdade de expressão sempre será um ponto importante para escritores, especialmente quando se trata de autopublicação. Reúna um grupo de escritores e pergunte se livros devem ser censurados. Dificilmente encontrará alguém que concorde.

No entanto, sabemos que, na prática, é uma questão muito mais complicada, que vai além de censurar ou não. Às vezes, trata-se de tabus e de “bom gosto”. Até onde vai a liberdade criativa na ficção? Está liberado escrever sobre toda e qualquer coisa? Bem, você pode até escrever, mas sempre terá que lidar com as críticas. Publicar livro é aceitar também que sua produção criativa não existe dentro de uma bolha.

Os tópicos que recomenda-se abordar com cuidado, quando não evitar totalmente, são aqueles problemáticos também na vida real. Tópicos sensíveis, que costumam envolver o sofrimento de pessoas e até animais. Se a sequer menção desses assuntos é um gatilho para você, é melhor parar de ler agora.

Na internet, é possível notar um movimento crescente de críticas ao consumo de certos tipos de conteúdo. Por exemplo, se um leitor gosta de um casal fictício que é incestuoso, muitas pessoas acreditarão que esse leitor apoia incesto na vida real.

Embora esse comentário pareça um pouco exagerado, afinal, a maioria esmagadora da população condena o incesto, ainda é interessante pensar no tipo de impacto que a ficção pode ter na vida real.

É frequentemente teorizado, por exemplo, que Shakespeare inventou o amor romântico como conhecemos hoje. O amor romântico dramatizado e idealizado, o amor romântico que é simbolizado pelo casamento.

Se a ficção tem o poder de dar forma à maneira que expressamos e idealizamos nossos sentimentos, impactando toda uma cultura, então não seria correto argumentar que ela existe de forma completamente isolada da vida real.

Ainda assim, um universo fictício não existe no mesmo plano em que a vida real. Quando lemos uma obra de ficção, estamos entrando em contato com outro mundo. As personagens ali não existem em carne osso. O universo dessas personagens não obedece às mesmas regras que o nosso. Se uma personagem morre, sua morte não terá as mesmas repercussões que a morte de uma pessoa real.

É por esse exato motivo que, ao entrar em contato com uma obra de ficção, exercemos a “suspensão de descrença”. Nós sabemos que nada daquilo é real. Escolhemos viver uma ilusão temporária para conseguirmos nos imergir na história.

Muitas vezes, aquilo que nos repulsa na ficção é justamente o que nos remete a traumas pessoais. Nem sequer precisa ser algo tão sério. Às vezes, você se irrita mais com uma personagem ingrata e invejosa do que com um vilão que usa magia para matar pessoas indiscriminadamente.

Isso porque você conhece pessoas ingratas e invejosas na vida real e elas já prejudicaram você. Enquanto isso, o conceito de um “assassino mágico” está muito distante da realidade de várias pessoas. Além disso, o impacto dessas mortes fictícias depende diretamente do laço emocional criado entre o leitor e as personagens vítimas. Para que o leitor se importe, ele precisa conhecê-las primeiro.

O que precisamos pensar é em como alguns tabus e tópicos sensíveis se relacionam com a realidade do seu leitor. Por que os tabus são tabus, para começo de conversa? O tabu do incesto tem muito a ver com a reprodução. Todo mundo sabe que a probabilidade de uma criança nascida do incesto ter problemas genéticos é grande. Contudo, o problema não para por aí.

O incesto também envolve a corrupção de uma relação familiar. Tratando-se do incesto entre pais e filhos, por exemplo, existe uma relação de poder envolvida. Os pais são autoridade em relação aos seus filhos. Além disso, os pais devem ser as pessoas responsáveis por prover amor, educar, proteger, alimentar. Ao desenvolver uma relação romântica ou sexual, os filhos perdem esse porto-seguro. É mais do que justo a sociedade condenar esse comportamento.

Outros tabus, por sua vez, não são inerentemente ruins, mas apenas malvistos pela sociedade. Por exemplo, a masturbação pode ser considerada um tabu. Em especial quando se trata da masturbação feminina. É raro uma mulher falar sobre masturbação. É um tópico considerado “vergonhoso”.

Isso acontece porque, historicamente, a mulher era proibida de sentir desejo. O que, por sua vez, tem a ver com a ideologia cristã de que o sexo existe apenas para reprodução. O questionamento é: quando uma mulher se masturba, ela está fazendo mal a alguém? Então, ainda que a sua fé condene o desejo, não há nada universalmente danoso para a sociedade em se masturbar e falar sobre masturbação.

Um dos papéis da literatura é explorar essas questões da sociedade. Através da ficção, podemos questionar o “certo” e o “errado”. Podemos tanto entender mais visceralmente porque consideramos algo cruel e ruim, quanto explorar os tabus que secretamente desejamos. Podemos nos traumatizar e nos curar.

Mesmo com a melhor das intenções, às vezes podemos abordar um assunto sensível de forma insensível. É algo comum, por exemplo, quando o tema da obra de ficção é a violência sofrida por um grupo minoritário, e a forma de abordar esse tema é expondo atos de violência. Nesse caso, o que pode acontecer é uma “retraumatização” e uma normalização de imagens de violência.

Para pessoas que já sofrem violência no dia-a-dia, cujas vidas envolvem uma constante preocupação com essa violência, é desagradável e desnecessário ver essas imagens gráficas na ficção. Isso não significa que a ficção não possa ser usada como denúncia da violência, mas que é necessário um cuidado para não glorificar a violência como efeito colateral.

Quando vemos imagens de violência com extrema frequência, o que acontece é que nos acostumamos com isso. Ficamos dessensibilizados. A imagem deixa de ser chocante. Essa não é a intenção, certo? E por isso o cuidado.

Abordar um tema na ficção não significa que o autor deseje que isso aconteça na vida real. A opinião de uma personagem não necessariamente reflete a opinião do autor. Mas, de qualquer forma, o leitor sempre terá a liberdade para interpretar o seu livro como achar mais adequado, assim como você tem liberdade para escrever o que quiser.

Não há uma resposta conclusiva quanto aos limites da liberdade criativa na ficção. Sempre existirão opiniões diversas quanto a esse assunto. Por isso, o máximo que podemos recomendar é que você escreva o que desejar e sinta-se livre para publicar ebook, mas com responsabilidade. Pesquise o assunto a fundo, domine-o por completo. E entenda que seus livros nunca agradarão a todos.

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