Game of Thrones: Como NÃO escrever heróis

Se você acompanha nosso blog, já aprendeu como escrever vilões e está esperando nossas dicas de autopublicação para escrever heróis e publicar livro cativante. Mas, hoje, vamos fazer um pouco diferente. Vamos ensinar a você como não escrever heróis.

E quem melhor para ensinar isso do que Game of Thrones? Afinal, a conclusão de um dos maiores fenômenos culturais das últimas décadas não pode passar em branco, seja ela boa ou ruim.

Normalmente, uma obra de ficção conta com um protagonista e um antagonista. Ou seja, uma personagem principal cujos objetivos movem o enredo e outra personagem que se opõe a ela. Essas personagens também costumam se enquadrar no modelo “herói” e “vilão”. O mocinho e o bandido. Game of Thrones nunca foi exatamente assim.

Na primeira temporada, somos levados a acreditar que o protagonista é Ned Stark, o homem justo e bom, pai de família, veterano de guerras, protetor do Norte. Aquele que está disposto a desmascarar tudo o que é desonesto para que o certo prevaleça. E ele morre. Se você ainda não assistiu a primeira temporada, sinto muito, mas é apenas o começo da trama. Volte duas casas e assista toda a série antes de continuar lendo.

Ned Stark não é recompensado pelas suas características heróicas. Muito pelo contrário. A honestidade é seu erro fatal. Aprendemos logo que na guerra dos tronos, não se pode dar uma chance sequer para os seus inimigos, muito menos confiar em seus aliados. Um gesto de boa fé não significa nada.

E, desprovidos desse herói, seguimos em frente, acompanhando diversas outras personagens, que se encaixam em diversos outros modelos e subvertem nossas expectativas de diversas outras formas. Não temos um herói em Game of Thrones, nem um vilão. O que temos são diversos pontos de vista de uma mesma história.

Personagens como Sandor Clegane, o “Cão de Caça”, nos ensinam a ver além das características simples que definem o bandido e o mocinho. Sua função como guarda-costas do sádico príncipe Joffrey, seu rosto queimado e seu jeito de poucos amigos tornavam-o assustador aos olhos inocentes. E Sansa, a menina que começa a série apelidada de “passarinho”, temia sequer olhar para ele.

Clegane a lembra que seu pai é um assassino, seu irmão é um assassino, assim como muitos outros ao seu redor, e que é bom que ela se acostume a olhar para eles. A mensagem de Clegane vale para nós, autores, também. Há muito mais em um assassino do que um rosto feio e uma atitude ruim. Há muito mais em uma personagem do que apenas uma de suas características.

Clegane pode ser assustador, mas também tem características redentoras, como sua vontade de proteger as meninas Stark. E essa redenção é concedida a ele.

Sansa, por sua vez, eleva-se de uma personagem pela qual ninguém dava nada até uma grande rainha. Desde o início, esse era seu desejo, mas todos, inclusive ela, imaginávamos que seria realizado de forma diferente, casando-se com um rei. Sansa termina a série como rainha governante, autoridade absoluta no Norte, e sem homem algum ao seu lado. Ela não precisa de homem algum ao seu lado. Muito pelo contrário.

Nem todo desenvolvimento caminha em direção à redenção, no entanto. Cersei Lannister, por exemplo, evoluiu grandiosamente ao longo da série, mas nunca como uma figura “do bem”. E, sem dúvidas, é uma das personagens mais interpretadas como vilã… mas será que ela é mesmo? No fim das contas, ela é apenas mais uma competidora na guerra dos tronos, defendendo seus próprios objetivos, por mais egoístas que sejam.

Odeie amá-la ou ame odiá-la. Cersei tornou-se uma das personagens mais icônicas da série e mesmo após mandar matar uma criança, condenar qualquer um que sequer cruzasse seu caminho, negar comida aos pobres, torturar seus inimigos e explodir toda uma parte da cidade, matando incontáveis pessoas… mesmo assim, haviam fãs torcendo por sua vitória no final.

Este artigo, contudo, não é apenas para cravar elogios ao bom desenvolvimento das personagens ao longo de várias temporadas. Também temos muito o que aprender com os erros de Game of Thrones. De fato, como não escrever heróis.

Precisamos falar sobre Daenerys Targaryen. Uma vez “heroína”, agora “vilã”. A construção de Daenerys foi, de muitas formas, heróica. Ela veio do tudo e do nada ao mesmo tempo. Única filha viva da dinastia Targaryen, que foi dizimada pela revolução de Robert Baratheon, mas sem direito ao trono. Para seu irmão mais velho, Viserys, autointitulado “o dragão” e verdadeiro herdeiro ao trono, ela não passava de uma moeda de troca.

Daenerys seria importante se não fosse mulher, se o trono de sua família não tivesse sido usurpado. Ela e seu irmão viviam de promessas de um trono de ferro em uma terra de onde foram exilados desde infância, estrangeiros no próprio lar. O tudo que era nada, na prática.

Contudo, a Khaleesi dos Dothraki mostrou ao mundo uma possibilidade diferente. Após ser vendida para um marido que até então parecia um “selvagem”, Daenerys começa a encontrar poder em si mesma. E ver esse poder nas mãos de outra pessoa levou Viserys à perdição. Daenerys risca seu primeiro oponente. Agora, ela se vê como a herdeira ao trono, que ainda está tão longe.

Sua trajetória é lenta, mas de conquistas extasiantes na base de muito suor, fogo e sangue. Daenerys foi vendida e estuprada, mas conquistou o amor e adoração do marido e o povo que a comprou. Daenerys perde seu marido e filho, mas dá a volta por cima chocando três ovos de dragões e provando-se a “não queimada” ao sair ilesa de uma pira de fogo.

Ela atravessa desertos, conquista cidades, extermina seus inimigos até mesmo quando tudo indicava que ela estava indefesa. Como os próprios conselheiros reais Tyrion e Varys comentam, a trajetória de Daenerys faz com que ela acredite ser predestinada à glória e à salvação dos povos.

O ponto controverso de Daenerys Targaryen é justamente o que define seu clã: fogo e sangue. Ela mata seus inimigos. Os donos de escravos, os nobres que mataram crianças. Daenerys se infiltra em sociedades às quais não pertence e muda a ordem social para acabar com a opressão. O seu destino é quebrar correntes.

Para algumas pessoas, e especialmente personagens, essa contagem de cadáveres é suficiente para questionar a integridade dela. E somos levados à pergunta principal: seria o destino de Daenerys enlouquecer assim como seu pai, o infame Rei Louco, que queria queimar Porto Real até o chão? A resposta dos diretores foi sim.

Na oitava temporada de Game of Thrones, observamos Daenerys surtar em questão de poucos episódios ao perder dois de seus dragões, sua mais fiel conselheira, a sensação de ser amada, a lealdade de seus aliados e, por último, mas não menos importante, o “direito” de sucessão ao trono Targaryen. E esse surto a leva a matar centenas de milhares de pessoas inocentes, incluindo mulheres, crianças e soldados que já haviam se rendido.

Essa mudança nos leva a algumas perguntas: uma pessoa matar donos de escravos é realmente um indício de que ela matará inocentes também? É possível argumentar que isso é uma falsa simetria, afinal donos de escravos são pessoas com poder e que o usam para oprimir.

E, se a violência e o assassinato são sempre errados, isso não condenaria também as outras personagens da série, incluindo o próprio Ned Stark? Afinal, ele também matava seus inimigos. Inclusive, a revolução que liderou junto a Robert levou ao saqueamento de Porto Real pelas mãos de Tywin Lannister. Isto é, à morte e ao abuso de inocentes.

De uma maneira ou de outra, ainda que existissem indícios desde o começo, é possível afirmar que a mudança de Daenerys foi rápida demais. Talvez a lição mais preciosa de hoje seja que indícios não substituem o desenvolvimento de uma personagem.

Em outras palavras, mesmo que você encha seu livro de foreshadowing, como profecias, ditados ou histórico familiar, ainda assim é necessário que as personagens cresçam etapa por etapa de maneira coerente. Nenhuma mudança deve ser repentina, e se você precisa explicar para os seus leitores porque algo aconteceu do jeito que aconteceu, é porque tem algo errado.

A série tenta nos convencer a temporada inteira de que Daenerys é uma tirana. Game of Thrones, que sempre se destacou por não ter um julgamento moral nítido, uma divisão entre o bem e o mal, se tornou maniqueísta. De um lado as sombras, do outro, a luz.

Para fazer esse enredo crível, desproveram a personagem de tudo que ela tinha para efetivamente isolá-la, ignorando inclusive seus aliados que ainda estavam vivos. A lógica também foi pela janela, fazendo com que em uma hora matar um dragão fosse a coisa mais fácil do mundo e noutra, impossível. É difícil de engolir.

De uma maneira ou de outra, Game of Thrones foi e ainda é uma série inesquecível. Por mais críticas que possam ser feitas à oitava temporada, nós ainda não nos esquecemos dos bons momentos, nem deixamos de amar as personagens que amamos. Porque algo que foi construído tão lindamente por tanto tempo precisa de muito mais do que alguns erros para ser destruído.

Aprenda essas lições com Game of Thrones. Não escreva heróis. Escreva personagens complexas e multifacetadas. E, de preferência, que elas continuem multifacetadas até o fim.

E aí, autor? O que achou do final de Game of Thrones? Deixe aqui seu comentário!

1 comentário

  1. Tomas Pelosi Filho

    Outra perspectiva sobre o assunto.

    O arquétipo da Quebradora de Correntes

    Os capítulos finais de GoT deixaram a última temporada menos ruim. Embora os diálogos tenham seguido muito abaixo daqueles do início, extraídos dos livros, o dedo de George RR Martin apareceu na definição do destino de dois personagens centrais. Foi o que evitou um desastroso final agridoce.

    Daenerys amadureceu primeiro, encarnando um arquétipo fácil de se reconhecer no mundo real, mas poucas vezes bem representado na ficção: a “Quebradora de Correntes”.

    Como os manjados líderes carismáticos que se apoiam num discurso de justiça social, Khaleesi logo juntou um grande séquito de seguidores apaixonados que se atirariam na goela de um dragão por ela. Vendeu seu moto pessoal – “pereat mundus, fiat justitia” (acabe-se o mundo, mas faça-se justiça) – como uma forma de religião e prometeu limpar a terra dos “infiéis”, sem hesitar em executar no processo os inimigos, os amigos dissidentes e até mesmo mulheres, velhos e crianças inocentes que ousaram estar na linha de fogo de Drogon. Compreensível. Afinal, o que é a população de uma cidade comparada ao projeto de transformar o mundo inteiro num paraíso sem “mestres”, onde todos são iguais – menos ela e a sua trupe de puxa-sacos?

    Retirado o verniz, Daeneris era a “Quebradoras de Correntes“ proverbial, tirana implacável, mestre única e suprema, juíza incontestável do bem e do mal, amada e odiada, facilmente reconhecível nos Stalins, Castros, Chaves, Maduros e Lulas da vida (Tá certo, Lula não chegou a ser tirano, mas seria, se tivesse a oportunidade. Basta ver a sua admiração pelo trabalho dos outros).

    Daeneris morta, foi a vez de Jon cumprir o seu destino. Ao contrário de sua tia, encontrou solução narrativa fora da estrutura do arquétipo óbvio de seu personagem: o herói do monomito. Iludiu o público por oito temporadas cumprindo quase à risca todas as etapas da Jornada do Herói – chamada, reticência, provações, ajuda sobrenatural, mentor, abismo, transformação, etc. Menos a última, o retorno, na qual ele se salvaria e ao mundo pela força de sua moral sobre-humana.

    Felizmente para nós, fãs da série, Jon falha no teste ético supremo e toma o caminho escorregadio da justiça com as próprias mãos. Pior, não o faz por convicção, mas porque é induzido pelo papo de Tyrion e de Arya. No final das contas, ele era só um cara que dizia que não queria ser rei porque, no fundo, sabia que não era mesmo feito do material certo.

    Ficou mais verossímil, mais GRRM. Gostei.

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