E se você pudesse decidir como o livro que está lendo vai terminar? É mais ou menos por essa premissa que surgiu a ficção interativa, uma modalidade de narrativa que se desdobra conforme as decisões do leitor.
A ficção interativa é conhecida por vários nomes e existe de várias formas. Ela também é chamada de hiperficção, de gamebook e de “escolha sua própria aventura”. Pode vir na forma de um livro impresso, de um site, de um videogame e, é claro, de um ebook. Hoje em dia, temos até mesmo conteúdo audiovisual interativo, como o especial Black Mirror: Bandersnatch.
Essa modalidade de ficção pode vir com uma narrativa em segunda pessoa, com um leitor que se insere no papel de protagonista. Por vezes, esse leitor não apenas decide quais atitudes a personagem vai tomar, mas até mesmo pode escolher certas características relevantes, como sua profissão.
Alternativamente, o leitor também pode estar ali apenas como um espectador que possui poder decisivo. Neste caso, as personagens têm uma caracterização definida, e o objetivo do leitor é “desbloquear” desdobramentos diferentes para o enredo.
Seguindo um modelo ou outro, a ideia é que a ficção interativa se desdobre em várias possibilidades distintas, constituindo mais de uma possível “história” (se considerarmos por história uma narrativa com começo, meio e fim).
Desde decisões aparentemente pequenas, como o que a personagem comerá no café da manhã, até decisões de vida ou morte… tudo leva a uma rota distinta.
Às vezes, você pode escrever uma obra de ficção interativa com 100 cenas, mas ao “embaralhar” essas cenas de acordo com as decisões do leitor, o livro se multiplica em muitos, cada leitura gerando uma narrativa ligeiramente diferente.
Um ótimo exemplo dessa multiplicação de possibilidades é o especial Black Mirror: Bandersnatch. Nele, o espectador tem que tomar diversas decisões ao longo de sua duração, e cada decisão vai construindo sua experiência, como uma espécie de quebra-cabeça ou um jogo de dominó.
O episódio conta com 150 minutos de vídeo no total, que são divididos em 250 segmentos. A rota mais curta tem 40 minutos, mas em geral, o episódio costuma levar 90 minutos para ser assistido. Se você calcular todas as combinações de segmentos possíveis, há mais de um trilhão de rotas possíveis (fonte: Variety).
Só de pensar em todas as possibilidades, o espectador é levado a assistir de novo e de novo, procurando novos caminhos. A ficção interativa não se esgota em uma única leitura. Ela deve deixar o leitor insaciável, procurando por mais.
Contudo, o gênero já encarou seus problemas. Para os livros impressos, a falta de fluidez na leitura era uma questão. A cada bifurcação, o leitor devia “pular para a página tal” para continuar a narrativa. Ter que buscar o tempo inteiro a página certa, como se estivesse acompanhando um professor em sala de aula com seu livro didático, pode ser um golpe fatal na imersão do leitor.
O mesmo problema se encontrava nas tentativas mais antigas de produzir ficção interativa para o audiovisual. Afinal, na era das fitas cassetes não era fácil pular de um capítulo para o outro, certo?
Por esse motivo, a ficção interativa ganhou bastante força como uma forma de mídia digital, sendo inclusive mais conhecida como um gênero de jogos do que um gênero literário, mesmo que o conteúdo seja quase todo em texto.
Se até então a ficção interativa vinha em sites, em jogos e aplicativos, agora ela também pode vir em um formato que muito nos interessa: os ebooks. Você, autor independente, também pode lançar uma obra de ficção interativa por autopublicação.
Uma característica muito prática dos ebooks é a possibilidade de inserção de links. Você pode direcionar seu leitor para um site, que se encontra totalmente fora do livro, e também pode direcioná-lo para um determinado capítulo ou página do ebook.
Em outras palavras, quando a sua história encontrar uma bifurcação, basta o leitor clicar na opção desejada e pular diretamente para a página onde a narrativa continua. Simples, fluido.
Muito bem. Você gostou da ideia de publicar ebook de ficção interativa. Mas e aí, o que fazer agora?
1. Encontre a ideia central de sua história
Okay. A ficção interativa se desdobra em um milhão de possibilidades. Tudo bem. Ainda assim, o seu livro deve ter um enredo principal. Ele deve ter um tema. Uma tese. Sua história deve ser sobre alguma coisa.
Mesmo um videogame tem uma sinopse. O seu enredo deve girar em torno de algo. Pense nisso, delimite esse conceito principal. As bifurcações são o que vem depois!
Por exemplo, Black Mirror: Bandersnatch é sobre um desenvolvedor de jogos que decide adaptar para videogame um livro de ficção interativa que encontrou nos pertences de sua falecida mãe. Essa é a sinopse simples da história.
Em relação ao tema, conforme você assiste, independentemente de qual rota você tome, Bandersnatch sempre aborda a questão do livre-arbítrio. Temas de teoria da conspiração, espionagem, controle e liberdade são iminentes na história.
Você pode, é claro, abordar determinados questionamentos mais a fundo em rotas específicas, mas saber o que você quer dizer com a sua história é fundamental para que a sua história consiga transmitir uma mensagem para começo de conversa.
2. Comece pelo fim
Para começar a ramificar sua história, você deve também começar pelos elementos centrais. Que tal começar pelo fim?
Pense em um possível fim para a sua história. E a alternativa? Uma maneira bastante simples de começar é tentar delimitar um final “feliz” e um final “triste”. Caso essa dicotomia não funcione para a sua história, tente pensar em opostos.
Alerta de spoiler! Vamos contar um segredo sobre o final de Bandersnatch: não existe um final da história em que o protagonista fique bem e o seu jogo seja um sucesso. É necessário escolher entre um ou outro: sua saúde mental ou sua carreira.
Entre todas as opções de final (e não são apenas duas), essa dicotomia sempre existe. Não há um final totalmente bom ou um final totalmente ruim, mas há sempre a escolha entre sacrificar um aspecto para valorizar outro, há sempre uma oposição.
A diferença entre os finais pode ser o limite entre a vitória e a derrota, a catástrofe e a sobrevivência. Também pode ser apenas entre uma opção e outra. Por exemplo, ao escrever uma história de amor, os finais podem variar entre ficar ou não junto com o interesse amoroso, entre escolher um interesse amoroso ou outro.
Se você quiser publicar livro de aventura com caça ao tesouro, pode desenvolver um tesouro que traga consequências imensas para quem o carrega. Seu protagonista pode decidir entre levar o tesouro mesmo assim, deixá-lo lá para o próximo explorador ou tentar eliminar a maldição de vez.
3. Explore as pequenas ramificações
Já pensamos nos principais resultados das decisões, mas e os detalhes? Se a ficção interativa fosse só sobre desbloquear finais diferentes, o leitor poderia pular direto para as últimas páginas, ler tudo e se dar por satisfeito. Mas não é assim que a banda toca.
A ficção interativa constrói uma experiência única ao trazer consequências para cada decisão do leitor. Se você decide ajudar ou não uma personagem no começo da história, essa mesma personagem pode voltar mais tarde e responder na mesma moeda, para bem ou para mal.
A melhor maneira de organizar esses desdobramentos é com um fluxograma. Comece com um ponto de partida, a primeira cena da história, e então crie ramificações. Você pode encontrar diversas ferramentas automatizadas para a criação de fluxogramas na internet. Caso você não saiba o que é um fluxograma, aqui está um exemplo:
4. Formato, gênero e tom da história
Você já sabe mais ou menos qual história você quer contar. Mas como contar essa história?
A ficção interativa é muito diversa: pode ser contada em primeira, segunda e terceira pessoa. Pode pertencer aos mais diferentes gêneros literários, do suspense ao erótico (e talvez até os dois ao mesmo tempo). Pode ser voltada para os mais diversos públicos, do infantil até o adulto e por aí vai.
Os leitores podem buscar diversas coisas na ficção interativa: desde um enredo complexo, com múltiplas possibilidades e mistérios para serem concluídos; até uma ficção que se adequa às suas vontades, com uma protagonista que é exatamente o que você quer que ela seja e que não toma decisões que você considera estúpidas.
O que você precisa entender é o que você quer que seu livro seja e começar a definir um formato para a sua narrativa a partir daí.
Livros infanto-juvenis de aventura costumam ter menos ramificações, mas apostam bastante em enigmas para os leitores desvendarem. Os livros infantis também podem seguir uma linha educativa, mostrando para as crianças que suas atitudes têm consequências.
Livros de romance costumam seguir um modelo de “simulação de namoro”, na qual a protagonista pode tentar conquistar seu interesse amoroso ou escolher entre diversas personagens que são apaixonadas pela protagonista. Aqui, há ênfase nas pequenas interações: esconder seus sentimentos ou falar abertamente, aceitar um encontro ou focar-se em outras responsabilidades, etc.
Um livro de suspense pode apresentar diversas ramificações e também enigmas, permitindo que o leitor investigue um mistério de modo que seus palpites e sua habilidade de encontrar pistas tenham impacto direto no enredo.
O fator da voz do narrador também é fundamental:
- A narrativa em primeira pessoa tem um narrador-personagem que se apresenta ao leitor e, de certa forma, toma decisões junto com ele.
- A narrativa em segunda pessoa, por sua vez, tem uma personagem principal neutra, sem personalidade própria, na qual o leitor pode se inserir.
- A narrativa em terceira pessoa, nesse quesito, é a que mais afasta o leitor, mostrando uma personagem totalmente formada. Ainda assim, o leitor espectador tem poder de decisão, controlando o destino dessa personagem.
E assim, vamos para a próxima etapa…
5. Escreva
Você já sabe sobre o que é a sua história, como deseja contá-la e mais ou menos como ela pode terminar. Agora é hora de simplesmente escrever.
Tudo que foi planejado nos passos anteriores pode sofrer mudanças agora, mas não tem problema. Essa é a hora do “vamo ver”.
Escrever uma obra de ficção interativa pode ser uma tarefa bastante confusa, afinal, ela não segue uma ordem perfeitamente linear como a maioria dos romances. O que é o começo, o meio e o fim de uma história que tem várias versões diferentes?
Para simplificar, você pode pegar o enredo que colocou no seu fluxograma, com todas as bifurcações, e preparar um “roteiro” resumido. Basicamente, você vai dividir tudo em cenas (ou segmentos) e escrever um rascunho bem simples do que é para acontecer em cada parte.
Na hora de escrever, você pode começar do começo. Conforme a narrativa se ramificar, você terá um guia identificando qual cena você está escrevendo e, caso deseje escrever outra rota, saberá exatamente onde parou, o que pertence a cada rota e por aí vai.
6. Revisão, teste e crítica
Quando você terminar seu primeiro rascunho, é provável que tenha que consertar muita, mas muita coisa mesmo. É preciso que a história flua em todas as rotas possíveis, que esteja tudo bem escrito e que faça sentido.
Por isso, é possível que você tenha que eliminar muitos excedentes e mais… a leitura de revisão deve ser feita em todas as rotas possíveis (se é que você será capaz de testar tudo).
É bom você passar esses testes e fazer adaptações por conta própria em um primeiro momento, mas é necessário pedir a opinião de outras pessoas. Sempre recomendamos que você busque profissionais para realizar a edição e a leitura crítica, mas além disso, também é interessante que você tenha uma quantidade razoável de leitores-teste.
Somente com uma grande quantidade de leitores-teste você poderá ver na prática a dinâmica entre leitor e narrativa, observando se as rotas fazem sentido e se não há nenhum furo onde você não imaginava.
Anote todo o feedback possível e vá para a próxima etapa.
7. Edição final e publicação
Agora é a hora de corrigir todos os erros que você já identificou, de reescrever tudo o que precisa ser reescrito, de mandar o seu livro para um bom editor (caso possível), converter o arquivo para epub e, enfim, publicar!
E é isso por hoje. E aí, autor? Está pronto para publicar livro de ficção interativa?
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