Qual o segredo para o público gostar de uma personagem? Ela deve ser linda, sem defeitos? Ou talvez, quem sabe, ela deva errar… e muito? Bem. Nas dicas de autopublicação de hoje, o que vamos falar hoje não é sobre como publicar livro com um protagonista que seja amado por todos, mas sim como criar uma personagem que torne a sua história melhor.
Uma personagem perfeitinha pode até conquistar alguns fãs, mas ela não será verossímil. Pessoas erram. Até animais têm características que podem ser consideradas boas e ruins. É isso que nos torna seres vivos complexos. É isso que faz uma personagem parecer real para o público.
Essa verossimilhança contribui de várias formas para uma história. Ela aumenta a imersão do leitor, pois ele vai acreditar no que está lendo; pode facilitar a identificação entre o leitor e a personagem; e, acima de tudo… faz com que o enredo seja mais dinâmico.
Pense bem. Uma personagem que nunca comete erros é uma personagem capaz de superar qualquer desafio. É uma personagem que nunca se mete em uma furada se depender dela mesma. É uma personagem que destrói qualquer suspense, pois o leitor sabe que ela sempre se dará bem. E, honestamente, isso pode ser até irritante de se ler.
Nós, humanos, erramos. Nós temos dias ruins. Nós temos medos. Nós nos arrependemos das nossas atitudes. Às vezes, achamos que algo errado é certo. Outras vezes, sabemos que algo é errado e fazemos mesmo assim.
Além do mais, leitores estão dispostos a perdoar personagens imperfeitas desde que elas sejam interessantes o bastante. Uma personagem que comete atrocidades em busca de um bem maior pode conquistar o perdão dos leitores. Uma personagem com uma personalidade terrível, mas que é assim por causa de traumas de infância, pode conquistar a compaixão. Às vezes gostamos de um vilão terrível simplesmente porque ele é divertido.
Sim, pode ser frustrante ler uma personagem que comete os mesmos erros que nós, como um espelho que exibe todos os nossos defeitos. Mas, ainda assim, é uma personagem que causa impacto. Uma personagem que reflete a verdade. Uma personagem dinâmica. E é esse tipo de personagem que você deve criar para publicar ebook que engaja os leitores.
O defeito trágico na tragédia antiga
Na tragédia grega, existia um conceito chamado “hamartia”. O defeito trágico. A falha fatal. Trata-se de um defeito grave na personalidade do protagonista, que leva à sua desgraça no final. O mais comum exemplo de “hamartia” é “hubris”: o excesso de orgulho e ego em um herói.
Podemos observar hubris em Édipo Rei. Nessa tragédia, o Oráculo de Delfos revela ao protagonista, Édipo, que seu destino é matar seu pai e casar-se com sua mãe. Édipo é tão orgulhoso que decide se rebelar contra seu próprio destino. Para isso, ele foge em direção à cidade de Thebes, onde, ironicamente, o seu destino se concretiza.
Apesar de Édipo ter cometido esses sacrilégios em ignorância, o mal que lhe recaiu foi causado por sua hubris. Um ego tão grande que acreditou ser capaz de desafiar os deuses.
Na tragédia Shakespeariana, também podemos observar exemplos de hamartia. Em Hamlet, o defeito trágico do protagonista é sua indecisão. Ele deseja se vingar de Claudius por assassinar seu pai, mas sempre retarda a ação, buscando provas e justificativas.
Seu dilema se prolonga por tanto tempo que, essencialmente, Hamlet arruina sua própria vida e todas as suas relações. No fim, há mortes atrás de mortes.
A relação de causa e consequência entre hamartia e o fim trágico serve também como um aviso para as platéias. Em geral, pode-se aprender uma lição com essas peças. Não seja orgulhoso demais, não seja indeciso demais.
Contudo, é óbvio que a leitura dessas personagens depende muito do contexto do público. Uma tragédia grega não terá o mesmo impacto social no Brasil do séc. XXI quanto teve na Grécia em 429 aC.
Como criar personagens imperfeitas na contemporaneidade
Nem todo defeito de personagem precisa seguir os moldes da tragédia antiga. Os valores mudaram daquela época para a nossa, e nem precisamos mencionar que cada cultura tem suas próprias noções de certo e errado também, não é? Além disso, a própria medida em que uma personagem erra pode variar.
Podemos separar os defeitos de personagens em três categorias:
- Defeito insignificante
- Defeito maior
- Defeito trágico
O defeito insignificante é aquele que contribui para a caracterização da personagem, mas que não tem grande impacto no enredo. Esse defeito não precisa ser relacionado à moralidade da personagem. Pode ser apenas um hábito irritante ou falta de aptidão em alguma área específica, como a matemática ou os esportes, por exemplo.
O defeito maior é aquele que influencia diretamente o enredo, muitas vezes gerando conflitos e/ou desafios para a personagem. É comum que esses defeitos sejam falhas de caráter da personagem. Alguns exemplos são:
- Vícios – a personagem pode contrair uma enorme dívida com o tráfico, que coloca ela e sua família em risco de vida
- Medo de intimidade – a personagem não consegue se abrir e confiar em outras pessoas, fazendo com que ela sabote suas próprias relações e se veja sozinha em momentos cruciais
- Teimosia – a personagem pode relutar em aceitar o seu destino enquanto herói, fazendo com que outras pessoas paguem o preço por não ter interferido em situações cruciais
O defeito trágico é nada mais, nada menos do que a hamartia. Para ser categorizado dessa forma, a falha da personagem deve ser o motivo de sua desgraça no final da história. A hamartia pode ser reimaginada em vários cenários. Por exemplo, é possível que o defeito trágico de uma personagem não a torne uma pessoa ruim:
- Uma personagem que confia demais pode levar uma facada nas costas
- Uma personagem com complexo de herói pode se sacrificar à toa
- Uma personagem com sede de vingança pode jogar fora a chance de ser feliz
Como você pode observar, às vezes até mesmo o que parece um defeito “bobo” pode ter graves consequências. E são justamente as consequências que definem em qual categoria essa falha da personagem se encontrará.
Como a falha de uma personagem pode mover o enredo?
O ponto crucial aqui é encontrar a conexão entre as características da sua personagem com o enredo do seu livro. Cada história tem suas próprias necessidades, assim como cada gênero costuma ter uma definição diferente para o que é um “final trágico”.
Ao escrever uma história de amor, pode-se dizer que os erros mais graves que uma personagem que pode cometer são aqueles que prejudicam o desenvolvimento da sua relação amorosa. Por exemplo, medo de intimidade, arrogância e, às vezes, a própria distração.
No primeiro caso, temos uma personagem que tem medo de se entregar ao amor. No segundo, uma personagem que subestima o potencial do seu par romântico e possivelmente o repele com sua personalidade desagradável. No terceiro caso, temos uma personagem que não consegue enxergar o amor mesmo quando está na sua frente.
Em uma história com cenas de ação na qual o protagonista é o único capaz de proteger a humanidade da destruição iminente, uma das falhas mais graves que essa personagem poderia ter é o medo de assumir seu papel de herói.
É um defeito frustrante, mas que faz sentido. O protagonista carrega o peso do mundo nas costas e, por isso, às vezes sucumbe à pressão. O problema é que não há ninguém que substitua o herói. Quando ele não age, não há quem possa proteger a humanidade. O protagonista precisa ver as consequências da sua omissão para enfim perceber que não há escolha se não seguir seu destino.
Se você quer saber como criar suspense em uma história, pense em um protagonista que é perseguido por um psicopata. Pode ser interessante fazer com que ele seja obrigado a enfrentar suas maiores fobias. Será que essa personagem será capaz de superar seu medo paralisante e vencer no final? Quanto maior a fobia, maior o suspense.
Só tome cuidado para não errar na mão. As falhas de uma personagem, para serem boas narrativamente, devem ser verossímeis e coerentes com sua caracterização. Fazer com que uma personagem cometa erros apenas para mover a narrativa pode ser frustrante. Ainda mais se for um erro bobo, que poderia ter sido evitado facilmente e que não condiz com as atitudes da personagem em outras ocasiões.
Todo erro que uma personagem comete deve ser baseado em quem ela é como pessoa. Existe um motivo para ela ser assim? É desse jeito que ela costuma agir? Faz sentido ela errar nessa situação específica? Existiam fatores externos que contribuíram para que ela falhasse nessa ocasião? É essencial levar tudo isso em consideração.
Desde que você tome esse cuidado, a falha de uma personagem pode ser um acerto do autor. Personagens imperfeitas são impactantes e tem enorme potencial narrativo. Saiba como usá-las a seu favor e seu livro será sensacional.