Exercício de escrita: mudando o ponto de vista

Que leitor aficionado nunca pensou: “e se essa história fosse contada sob outro ponto de vista?”. Entre clássicos e best-sellers, muitos livros adotam uma narrativa focada na perspectiva de apenas uma personagem, o que deixa toda uma outra versão da história livre para a nossa imaginação.

Narradores podem ser muito parciais e pouco confiáveis, o que alimenta ainda mais a chama da curiosidade. E se ouvíssemos uma versão diferente dessa história? E se Capitu pudesse nos dizer a verdade sobre sua relação com Bentinho? E se o amante misterioso revelasse a paixão em seus pensamentos? E se o vilão pudesse defender suas crenças?

Não é a toa que cada vez mais surgem filmes e livros que apresentam essa virada na perspectiva. Stephenie Meyer deu a Edward sua própria versão da história. Malévola e Cruella tiveram suas estreias como protagonistas nas grandes telas. O público quer essas histórias.

Contudo, o assunto de hoje não é bem sobre as vontades do grande público, ainda que possa ser a receita para publicar livro que conquiste os leitores. A dica de autopublicação de hoje é um exercício para você liberar sua criatividade e exercitar a escrita. Um exercício de “e se?”.

  1. Escolha uma história que já existe. Pode ser um livro que você mesmo escreveu, pode ser uma obra que pertença a outra pessoa. De preferência, que essa obra tenha apenas um narrador e apenas uma personagem em foco.
  2. Em seguida, escolha uma personagem cuja perspectiva não é revelada ao leitor na narrativa original.
  3. Agora, coloque a mão na massa: reescreva uma cena da história sob o ponto de vista da personagem escolhida.

Se você se sentir inspirado, não precisa se prender a apenas uma cena. Por que não reescrever um capítulo inteiro? Por que não fazer uma nova versão do livro? Siga sua criatividade!

Alternativamente, você também pode experimentar reescrever uma mesma cena sob a perspectiva de várias personagens diferentes, uma de cada vez. Explore o quanto essa mudança pode expandir o resultado final.

Entendendo perspectivas e narradores

Quando pensamos em perspectiva na narrativa, abrimos um leque amplo de possibilidades. Mesmo em uma história narrada em primeira pessoa, o narrador não precisa ser a personagem principal. Existem diversas combinações de narrador e protagonista que podemos utilizar ao publicar ebook:

  • Narrador-personagem protagonista
  • Narrador-personagem coadjuvante
  • Narrador onisciente intruso
  • Narrador onisciente neutro
  • Narrador observador
  • Etc.

Esses diferentes rótulos falam sobre a dinâmica que existe entre a narração e a personagem que está no centro da cena, com os “holofotes” apontados para ela. Enquanto a personagem representa a ação, o narrador representa o pensamento, a voz. Juntos, narrador e protagonista guiam a experiência do leitor.

Essas figuras podem convergir em uma só quando falamos de um narrador-personagem que também é protagonista da história. Neste caso, a personagem que está no centro da ação pode contar sua própria história da maneira que quiser.

Contudo, se o narrador-personagem for outra pessoa, acompanharemos a história sob outro ponto de vista. A personagem principal ainda será o foco da história, mas teremos uma percepção limitada. Não saberemos ao certo o que o protagonista pensou ou sentiu enquanto agia. Saberemos apenas o que o narrador achou de tudo aquilo. Saberemos apenas o que o narrador souber.

O mesmo vale para todo narrador observador, mesmo que não seja uma personagem da história. A narrativa é apresentada ao leitor como se gravada por uma câmera. O que aconteceu ali é exposto. Pensamentos e segredos ainda são mantidos.

No caso das histórias contadas por narradores oniscientes, pode ser que o leitor tenha um acesso mais amplo, pois com a onisciência nenhum evento, pensamento ou sentimento é secreto. Contudo, a história ainda pode seguir apenas uma personagem ao longo de todo o arco narrativo. Nesse caso, outros pontos de vista ainda seguem inexplorados.

O que queremos que você faça nesse exercício é justamente descobrir quais possibilidades ainda não foram exploradas. Qual voz não foi ouvida? Qual perspectiva não foi revelada? E se olhássemos para tudo sob um ângulo diferente?

Como já dito, o narrador e a personagem em foco guiam a experiência do leitor. Mesmo que em uma única cena, ter acesso a outro ponto de vista pode mudar completamente a percepção do público. Segredos incontáveis podem ser revelados. Uma opinião pode influenciar a outra.

Por exemplo, você pode acompanhar a história em primeira pessoa de como o protagonista se apaixonou perdidamente por alguém que acabou de conhecer. Pode explorar sua angústia, descrever seus grandes gestos. E o interesse amoroso pode parecer uma pessoa cruel e ingrata.

E se você inverter o ponto de vista? E se o interesse amoroso puder contar sua própria história? Para essa personagem, pode ser desconfortável receber tamanha devoção de um completo estranho. Os grandes gestos podem ser invasivos. A angústia do apaixonado pode ser uma ilusão nascida do nada.

O leitor pode descobrir que algumas pessoas se iludem sozinhas, sem serem iludidas pelo outro. Que ninguém tem a obrigação de retribuir o sentimento alheio. Que ninguém deve “gratidão” a alguém que só causa desconforto.

O clássico de Nabokov teria sido muito diferente se escrito sob a perspectiva de Lolita. O que Humbert Humbert descreve como “amor” provavelmente teria outro nome na voz de Dolores Haze.

O jogo de luzes da narrativa é um dos seus aspectos mais fascinantes. Como você pode apontar o holofote para onde quiser, jogar as sombras sobre o que não tem interesse em revelar.

Queremos ressaltar que quando falamos “diferente”, não queremos dizer “melhor”, nem mesmo “pior”. Diferente é diferente. Literatura é possibilidade.

Um dos motivos de Lolita ser um livro tão interessante é justamente porque Nabokov nos permitiu acompanhar a mente distorcida de um vilão, que romantiza suas ações em uma narrativa parcial.

É interessante porque, com o bom senso, podemos perceber que não há justificativa para aquilo, mas ainda assim podemos acompanhar um ponto de vista distante das nossas próprias crenças.

E você, autor? Que experiência deseja passar para o seu leitor?

Se você gostou desse artigo, experimente ler: Uma história, múltiplos narradores.

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