A nossa percepção do que é perdoável ou imperdoável muda muito dependendo do contexto e a quem se refere. Em especial, se são pessoas reais que estão no nosso convívio ou personagens ficcionais.
É difícil determinar com exatidão onde está a linha que separa a ficção da realidade (e para cada um, essa linha se encontra em uma posição diferente), mas a verdade é que não é tudo a mesma coisa.
Quando se trata de personagens ficcionais, as pessoas se mostram capazes de relevar crimes que seriam impensáveis na vida real. Loki e Vegeta são ambos príncipes alienígenas que tentaram dominar o planeta Terra e cometer genocídio, mas isso não impede que o público os ame.
Ao mesmo tempo, se o público não gostar de uma personagem, também é aceitável desejar que ela acabe de forma que você não desejaria nem ao seu pior inimigo caso fosse uma pessoa de carne e osso. Basta olhar para qualquer rival amoroso mais ardiloso em romances. Temos vontade de atear fogo nessas personagens!
Talvez tudo isso esteja conectado à nossa identificação pessoal e às consequências reais (ou alegóricas) de um ato cruel. Muitas vezes, conseguimos ignorar a violência e o assassinato na ficção porque não nos toca. Não nos importamos com a personagem que morreu, não tivemos tempo de nos conectar a ela.
Por outro lado, se a vítima for querida pelo público ou provocar um sentimento quase universal de proteção, se torna mais difícil relevar o crime. É sempre mais difícil digerir quando uma criança ou um cachorro simpático morrem numa obra de ficção. A mão que executa esse ato sempre será condenada.
O que é interessante pensar é: até que ponto um vilão pode ir antes de perder qualquer chance de redenção?
Cada indivíduo pode ter uma filosofia diferente acerca de redenção e punição, mas o que torna a ficção curiosa é que, nela, tudo pode acontecer. Até mesmo a redenção de um vilão com incontáveis mortes em suas mãos. E é sobre isso que vamos falar na dica de autopublicação de hoje.
Por que escrever arcos de redenção?
Bom, motivos não faltam para publicar livro no qual o vilão se redime.
Um dos mais comuns é que a personagem se tornou tão querida, seja para o autor ou para o público, que surge a vontade de oferecer uma “saída”. Afinal, o caminho das trevas costuma ser solitário, triste e com uma punição severa no final – a própria morte. Oferecer uma redenção, nesse caso, também pode ser uma forma de permitir que a personagem continue viva e encontre a felicidade.
Outro motivo é o interesse em estremecer as nossas percepções, mostrando que pode haver um lado bom em quem julgamos ser apenas ruim, que talvez toda pessoa possa se reformar. E é uma tacada de mestre quando o autor consegue transformar aquela personagem que foi odiada desde o começo em uma favorita do público. Neste caso, a redenção pode vir acompanhada da morte da personagem, fazendo com que o público se arrependa de todas as vezes que desejou a punição final.
Tipos de arcos de redenção
É importante ressaltar que não basta a intenção do autor para redimir uma personagem. É preciso trabalhar nesse arco de modo que você convença o público e, se possível, as personagens também.
Assim como em qualquer relação, é preciso estabelecer confiança. Para que acreditem na redenção de uma personagem com um histórico ruim, é importante que ela mostre vulnerabilidade, tenha uma motivação plausível e prove que mudou com atos.
Caso contrário, a tendência é que ela seja recebida com desconfiança. Não haverá motivo para que as outras personagens a acolham e o próprio leitor pode ficar atento para uma possível traição.
Assim, temos três pontos principais: vulnerabilidade, motivação e provações. A forma como eles são explorados, assim como o significado de cada item, pode variar bastante de acordo com a história. Entenda:
Vulnerabilidade
A vulnerabilidade cumpre dois propósitos em um arco de redenção: nivelar o jogo e provocar empatia. Dentre os dois, provocar a empatia é o mais vital. Quando enxergamos o outro como um ser vulnerável, podemos nos conectar com ele, compreendê-lo e talvez até querer protege-lo. Trata-se de um processo de humanização que automaticamente nos torna mais próximos dessa personagem em nossa vulnerabilidade humana.
Nivelar o jogo, por sua vez, tem uma função estratégica na negociação entre as personagens. Quando você mostra uma fraqueza, você está oferecendo uma vantagem para o seu oponente. Mostrar nossa fraqueza é uma forma de demonstrar confiança: a confiança de que aquela pessoa não vai se voltar contra você. Assim, é possível começar uma relação entre o vilão e personagens “benignas”.
Exemplos: passado trágico; fraquezas físicas; amor por uma personagem, etc.
Motivação
Por que você acreditaria que uma pessoa mudou da noite para o dia? O que leva a uma mudança dessas? Em geral, não se muda mesmo da noite para o dia. É preciso um pouco mais de tempo e, sim, um bom motivo. Afinal, se uma personagem consistentemente agiu mal, o que se entende é que ela escolhia dia após dia ser assim.
A mudança de lado – do bem para o mal – pode vir por vários motivos diferentes. É um dos pontos mais pessoais nesta lista. Às vezes, a motivação surge de maneira não tão nobre. O vilão pode perceber que o seu caminho está cada vez menos vantajoso, que não vai conseguir se manter muito tempo assim. E tudo bem.
A motivação não precisa ser nobre tanto quanto precisa ser plausível. Conquistar a simpatia é função da vulnerabilidade. A motivação serve para reduzir a desconfiança e fazer com que essa jornada de redenção faça sentido tanto para a personagem, quanto para o público.
É claro, existem personagens com motivos nobres também.
Exemplos: o vilão perdeu uma pessoa amada como efeito colateral das suas ações; o vilão percebe que foi manipulado para ser mal; o vilão percebe que está em desvantagem e que é melhor mudar seu estilo de vida, etc.
Provação
Atos falam mais do que palavras. De nada adianta um vilão declarar que mudou e depois fazer tudo de novo. Esse é o ponto que comprova que toda a vulnerabilidade e motivação foram genuínas, que mostra a consistência e sinceridade da personagem em sua mudança para melhor.
O que você tem que ter em mente aqui é que você precisa provar alguma coisa. Não basta oferecer ao público um ato aleatório e esperar que ele conclua o arco de redenção da sua personagem. É preciso que essa ação atue em conjunto com os pontos anteriores, fechando um ciclo.
Exemplos:
- Vulnerabilidade – sofreu lavagem cerebral quando criança por uma instituição;
- Motivação – percebe que a instituição a que serve é maligna e o manipulou desde o começo;
- Prova de redenção – se rebela contra a instituição, contribuindo para o seu desmantelamento.
- Vulnerabilidade – ama uma pessoa mais do que a si mesmo;
- Motivação – percebe que, para se aproximar ou proteger essa pessoa, precisará mudar;
- Prova de redenção – comete um grande sacrifício em prol da pessoa amada, podendo até mesmo morrer para salvá-la.
- Vulnerabilidade – não é imortal. Pode sofrer com feridas, doenças e solidão como qualquer humano;
- Motivação – percebeu que se continuasse como estava, terminaria mal. Decide que ser um vilão não vale a pena;
- Prova de redenção – vive uma vida consistentemente simples, sem cometer mais atos maléficos e ajudando as pessoas que cruzam seu caminho, podendo até mesmo colaborar com o herói.
Como você pode ver, não há apenas um caminho para a redenção. O que cada ponto significa depende muito da história que você está contando, e a forma como isso é explorado pode variar também.
Para algumas personagens, a redenção surge de forma dramática, como uma grande revelação seguida de um enorme gesto. Para outras, é um processo gradual, com uma mudança de mentalidade que se instaura aos poucos, seguida por toda uma vida de pequenos gestos de bondade.
Por fim, é importante reconhecer que a redenção não precisa ocorrer de forma unânime. Segundas chances não são necessariamente sobre todos se perdoarem e virarem amigos. O perdão pode vir de longe, sem intenção de reestabelecer contato. E o perdão pode não vir, mesmo quando há redenção.
A escolha de se reformar é pessoal, diz respeito ao caminho que um indivíduo decide trilhar. Para quem foi ferido por suas ações prévias, pode não existir nada que apague as marcas do passado. O ressentimento pode ser eterno.
Voltando à nossa pergunta, a resposta que acreditamos é que sempre há a possibilidade de redenção (ao menos na ficção). Basta compreendermos a redenção como um compromisso que começa no presente e se estende ao futuro.
Não se trata de apagar o passado ou desfazer os males, como se nada tivesse acontecido, e sim de assumir responsabilidade e agir de acordo.
Desde que essa personagem prove que entende que agiu errado, que não vai mais cometer os mesmos erros e maldades de antes e que pode ser boa para os outros de forma consistente, isso já é uma forma de redenção.
E aí, autor? Quais os seus arcos de redenção favoritos? Você tem interesse em publicar ebook com um vilão que se redime?
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Meu arco de redenção favorito é o do Severus Snape.
Teve uma infância difícil, sofreu bullying na escola e acabou escolhendo o lado errado, a ponto de pensar em deixarem matar uma criança desde que a mãe fosse salva.
No final, ele protegeu Harry e se redimiu. Continua sendo um professor cretino e que também fazia bullying com seus alunos, mas se redimiu.
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Exatamente, Geisa!
Você escreve? Seus personagens tem arco de redenção?