Tabula rasa, do latim “tábua raspada”, o que seria equivalente a um quadro em branco hoje em dia. Esse termo foi utilizado como uma metáfora para a mente pela primeira vez por Aristóteles e então tornou-se uma teoria completa nas mãos de John Locke. Em resumo, a mente não possui nenhum conhecimento inato. Começamos todos como tabula rasa e, ao longo da vida, adquirimos experiências e conhecimento.
Concorde ou não com essa teoria, muitas pessoas passam por um processo que vai além do “conhecer a si mesmo”. Está mais para uma construção de identidade. Experimentamos novos hobbies, novas maneiras de se vestir, novas amizades, tudo em busca de descobrir uma identidade que possamos chamar de nossa. E sem essa experimentação, é possível que a vida seja bem mais sem graça.
Como autores independentes, também é normal passarmos por um processo de experimentação até encontrarmos a nossa voz. No fim das contas, a “voz” na escrita é exatamente isso: sua identidade, sua personalidade, sua estética, sua performance como escritor. E quanto mais única for sua voz na escrita, mais você se destacará.
A voz transmite o tom do livro, transpassa as emoções e o ritmo das cenas, estabelece um diálogo com o leitor, dá a identidade para a obra que está sendo lida. De certa forma, é a voz que cativa o leitor. Seja a do narrador ou a das personagens.
No entanto, não é tão simples encontrar essa voz narrativa única e cativante. Para um escritor iniciante, e às vezes até mesmo um escritor experiente, pode ser um processo tortuoso, no qual a autocrítica ataca ferrenha.
Dependendo do tipo de livro que você escreve, esse processo não precisa ser um bicho de sete cabeças. Em determinados livros de não ficção (e até em outros gêneros), a voz do escritor é nada mais, nada menos do que a própria voz do escritor. Em outras palavras, às vezes está mais do que liberado escrever do jeitinho que você fala na vida real.
Nesses casos, você pode encontrar sua voz em três etapas simples:
- Pense na coisa mais interessante que já aconteceu com você
- Lembre da primeira pessoa para quem você queria contar essa história
- Lembre das palavras que usou para contar a história
Toda essa empolgação e intimidade na hora de contar uma história interessante é preciosa. E muitas vezes é exatamente o que o seu livro precisa. Agora, se você está com dificuldade para se lembrar exatamente como foi essa conversa, não dependa só da sua memória: conte a história de novo para alguém importante, que faça você se sentir à vontade. Mas só vale se a história ainda deixar você empolgado!
Em outros tipos de livro, encontrar sua voz para publicar livro pode ser um processo um pouquinho mais longo. Nem sempre o narrador do seu livro deve ser uma pessoa empolgada conversando com seu melhor amigo. Sendo assim, temos outro passo a passo:
- Descreva a você mesmo em três palavras. Ex.: sarcástico, engraçadinho e pessimista
- Descubra como você fala. Grave suas conversas, ouça sua voz, leia suas mensagens de texto. Pergunte a outras pessoas como é o seu jeito de falar. Faça anotações.
- Imagine o seu leitor ideal, descreva-o nos mínimos detalhes. Então, escreva um trecho do seu livro pensando nele. (Obs.: o seu leitor ideal pode mudar de um livro para o outro, assim como a sua voz. Pense em um projeto de cada vez)
- Liste cinco livros, revistas, blogs ou autores que você gosta de ler. Descubra o que você gosta no estilo de cada um. O que eles têm em comum? O que eles têm de diferente?
- Liste as suas maiores inspirações, sejam artísticas, culturais ou até mesmo pessoais. Como elas influenciam a sua escrita?
- Escreva sem pensar demais. Abra suas asas. Libere-se da insegurança. Apenas escreva livremente, do jeito que quiser. Depois, pare e leia o que escreveu. O estilo é diferente ou parecido a quando você escreve “a sério”?
- Pense em tudo o que você escreve. Você gosta de escrever assim? Você está satisfeito com o seu estilo? Você se sente bem quando escreve? Às vezes, ficamos presos em um estilo que não reflete nossa identidade, e isso pode tirar todo o prazer da escrita.
- Pergunte a si mesmo: “eu leria meus próprios livros?”. Essa pergunta pode parecer pesada e difícil, afinal, é comum sentirmos certa insegurança quanto ao nosso trabalho e termos receio de parecer arrogantes quando temos confiança.
Contudo, não há nada melhor do que escrever os livros que você gostaria que existissem no mundo. Tornar realidade aquela ideia fantástica, que parece que nenhum outro autor escreveu (pelo menos não do jeitinho único que você faria).
Não se trata de querer necessariamente revolucionar a literatura, mas tornar os seus próprios sonhos uma realidade. Foi o que o diretor Jordan Peele fez quando começou a fazer filmes de terror protagonizados por pessoas negras. Segundo as próprias palavras de Peele, ele criou seu filme favorito que não existia ainda. E foi premiado por isso (e possivelmente revolucionou o terror).
Talvez um dos exemplos mais célebres da voz na literatura brasileira seja Guimarães Rosa. Um autor com estilo tão único que existem léxicos e dicionários só sobre o seu vocabulário. Rosa não tinha medo de fugir do convencional, e o fazia com maestria, inventando um dialeto novo que parecia tão natural quanto o português que falamos em qualquer lugar do Brasil.
Em Grande Sertão: Veredas, o protagonista é Riobaldo, um jagunço do sertão antigo que conta sua história para um homem “estudado” da cidade. Leia você mesmo:
Hem? Hem? O que mais penso, testo e explico! todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião! para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma… Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio… Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso, vou no cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. Mas é só muito provisório. Eu queria rezar ― o tempo todo. Muita gente não me aprova, acham que lei de Deus é privilégios, invariável. E eu! Bofe! Detesto! O que sou? ― o que faço, que quero, muito curial. E em cara de todos faço, executado. Eu? ― não tresmalho!
E aí, autor? Já encontrou sua voz? Dê uma palinha nos comentários!
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