Dicas para escrever um diário fictício

Escrever um diário fictício é uma técnica ótima e, convenhamos, também muito conveniente para imergir o leitor em seu universo e apresentar as situações em primeira pessoa sem precisar explicar o porquê dessa história ser contada.

Com o diário, sabemos que o narrador escreve simplesmente porque é sua vida, acompanhamos a sua trajetória com acesso aos segredos mais íntimos e nos surpreendemos juntos com eventos bons e ruins.

Os romances epistolares, como são chamados na tradição literária, não são só rosas, no entanto. Se você está interessado na autopublicação de ebook, precisa planejar o livro como em qualquer outro gênero.

A história precisa de começo, meio e fim. Os elementos do enredo precisam se unir de maneira satisfatória. A voz da personagem deve ser única e interessante. O leitor deve sentir que o tempo e dinheiro gastos no ebook valeram a pena. Tudo isso requer trabalho. E nós vamos ajudar você com tudo isso.

Se você estiver iniciando o primeiro livro e ainda não acompanha o blog Bibliomundi, vale a pena dar uma olhada em nossos outros artigos sobre a estrutura de ebooks em geral antes de entrar a fundo no mundo dos diários.

Agora, chega de enrolação. Vamos às dicas para escrever um diário fictício:

1.     Planejamento

Nem todo autor é adepto do planejamento prévio de uma história antes de publicar livro. Abordamos essa questão no artigo, Enredo: planejar ou deixar rolar?

Por um lado, ao planejar tudo previamente, o autor pode sentir que recebeu um “spoiler” do próprio livro. Por outro, sem o planejamento, é bem fácil se perder no meio da história.

A verdade é que, independentemente de qual método você escolha, é importante manter algum tipo de organização enquanto você desenvolve o seu enredo, para que o seu ebook seja conciso e apresente uma história que mereça ser lida.

Você pode começar se perguntando “por que essa história merece ser lida?” e tentar entender o que tem de realmente cativante e extraordinário no seu ebook. A sua história deve evoluir ao redor desse ponto.

Uma boa maneira de desenvolver o seu romance epistolar linearmente é começar resumindo sua história inteira em um parágrafo. Assim, você começa do básico e consegue observar o começo, meio e fim de sua história de maneira objetiva.

Então, faça uma linha do tempo de todos os principais eventos que acontecerão na história e quais você pretende incluir no diário. Uma boa ideia é fazer anotações mais detalhadas sobre as cenas que você já consegue imaginar, como pequenos trechos de diálogo.

Essa linha do tempo será sua guia e, é claro, com o decorrer do tempo, é bem provável que muitas coisas que você havia planejado mudem naturalmente. (E é por isso que o planejamento não estraga tudo. Ainda há espaço para surpresas!)

Ao escrever, lembre-se que a primeira versão da sua história é apenas um rascunho, que ainda deve ser revisado e editado para que chegue a um nível profissional digno de autopublicação.

No momento de edição, você terá a oportunidade de aprimorar todos os elementos que ainda estão um pouco “brutos” com o conhecimento que você adquiriu conforme escrevia o diário.

2.     Apresentando o contexto

Vamos a outro desafio dos romances epistolares: o contexto! Pense bem. Sua história tem um protagonista. Esse protagonista tem uma vida inteira de pessoas e lugares que ele já conhece muito bem. Esse protagonista também tem um diário, isto é, um caderninho onde ele deve descrever seu dia-a-dia e compartilhar informações bem pessoais.

É um modelo excelente para apresentar os pensamentos e segredos íntimos de uma personagem. Por outro lado, não é muito fácil introduzir ao leitor todo o universo fictício que essa personagem conhece muito bem.

Resultado? Os seus leitores correm o risco de se sentirem como se estivessem ouvindo as conversas de um estranho no ônibus ou coisa parecida.

E, tudo bem que essa experiência também também tenha seu crédito (às vezes ouvimos histórias absurdamente engraçadas no transporte público), mas, enquanto escritores, temos a obrigação de tornar uma experiência ficcional em algo o mais verossímil e imersivo o possível. Essa obrigação é superior ao nosso compromisso com a realidade como ela é.

Em outras palavras, não precisamos escrever um diário exatamente como ele seria escrito na vida real, e sim de maneira parecida com um diário real, mas mais agradável à leitura.

Uma maneira de introduzir essas informações contextuais de maneira natural e agradável é fazendo com que o seu ebook comece no mesmo momento em que o protagonista recebe o diário.

Dessa forma, você pode se beneficiar da relação que existe entre autor e diário, como se o diário em si fosse uma espécie de amigo imaginário, e fazer com que o autor se apresente nas páginas, descrevendo o seu mundo aos poucos.

Ainda assim, tente não jogar informações demais de uma só vez! Existem vários recursos interessantes que podem ser usados para aprofundar o conhecimento do leitor sobre as personagens e o mundo do seu ebook, como:

  • Descrições naturais do dia-a-dia que revelam elementos contextuais

Ex.: “Hoje eu saí da aula mais cedo, às 11h30, porque o professor estava doente. Na volta pra casa, passei pelo parquinho onde eu costumava brincar quando criança e senti uma sensação muito esquisita na barriga. Não sei explicar.”

  • Flashbacks

Ex.: “Eu lembrei de um dia que eu brinquei com a Kelly naquele parquinho. A gente era criança, uns 7 ou 8 anos. Eu nem sei mais como ela está, ela não mora mais aqui tem um tempão. Mas eu lembro que naquele dia ela brincou só comigo. A gente rodou e rodou naquele brinquedo que gira e eu tava tonto de tanto rir, mas sem querer me soltei e caí no chão, batendo a cabeça.”

  • Fluxo de consciência

Ex.: “A Kelly ficou de castigo depois daquele dia e eu até hoje não sei o que aconteceu. Será que foi culpa dela? Meus pais nunca me explicaram. Eu só consigo pensar que aquele dia estava tão azul e eu lembro das dores de cabeça até hoje. Eu fico zonzo, o que foi aquilo? É um mistério na minha vida, e eu às vezes acho que eu nunca vou descobrir para onde foi a Kelly (…)”

Uma dica importante é usar cada um desses recursos com calma. Você pode jogar um pouco de informação de cada vez, espalhar pelos capítulos, de forma que o leitor conheça o protagonista pouco a pouco.

Isso não só evita sufocar os leitores, como também os deixa mais intrigados e envolvidos na história, que não se revela toda de uma vez só.

3.     Surpresas e reviravoltas

Tradicionalmente, as narrativas costumam contar com algum tipo de reviravolta ou revelação surpreendente próximo ao clímax da história. Por um lado, a estrutura do diário contribui para isso, caso o narrador também não saiba de nada e possa viver a surpresa junto ao leitor.

Por outro lado… e se o narrador souber dessa informação? E se ele tiver acesso a essa informação, mas simplesmente não quiser admitir? E mesmo que ele não saiba, como introduzir pistas para essa reviravolta de forma que ela não pareça absurda para o leitor?

Não é fácil. E, na verdade, a resposta perfeita para esses questionamentos cabe à criatividade e engenhosidade de cada escritor. Não fosse por isso, todas as reviravoltas seriam iguais e previsíveis, fugindo ao próprio propósito.

Podemos, contudo, trazer algumas ideias que podem ajudar você no caminho para a reviravolta perfeita.

Caso o narrador não saiba da informação surpreendente, ele pode adquirir essa informação por meio de pesquisa, investigação ou simplesmente porque outra pessoa o informou.

No último caso, seria ainda mais interessante se essa revelação afetasse o protagonista emocionalmente e, ao mesmo tempo, fizesse todo o sentido do mundo com tudo o que já foi dito no diário.

Então, seria interessante acompanhar o processo emocional e lógico do protagonista após receber essa informação, revendo todos os acontecimentos passados e como eles se encaixam com ela.

Caso o narrador saiba da informação surpreendente, é necessário pensar em um bom motivo para que essa informação não tenha sido compartilhada anteriormente.

Em geral, existem duas opções úteis para esse cenário.

  1. O narrador tinha um bom motivo para manter isso em segredo até mesmo do próprio diário, seja porque isso seria criar a evidência de um crime ou por pura vergonha
  2. O narrador simplesmente não considerou a possibilidade dessa informação ser importante. Neste caso, essa decisão precisa fazer muito sentido com o enredo e a personalidade do protagonista.

Agora, caso o narrador não queira admitir ou se lembrar da informação surpreendente, você pode pensar em diversos motivos psicológicos para que a personagem guarde esse fato nos confins da mente, longe do diário.

Por exemplo, pode ser um sentimento que cause desconforto na personagem, e por isso ela não queira admitir. Pode ser uma memória tão negativa que foi totalmente bloqueada da mente. Pode ser um fato que poderia mudar sua vida, e a personagem não queira sofrer as consequências de admitir esse fato para si mesma.

Em todo caso, como é uma informação que está guardada na mente da personagem, é recomendável que a revelação seja feita por meio de um processo gradual de auto-conhecimento, que possa ser acompanhado pelos leitores.

4.     Criando uma voz única

Por fim, mas não menos importante, chegamos à voz. Uma questão relevante em qualquer ebook, mas particularmente prioritária em romances epistolares.

Veja bem. Em livros, precisamos usar de recursos escritos para trazer à tona uma identidade única que cada personagem tem. Quando duas personagens contracenam em um diálogo, é ótimo que o leitor consiga sentir no estilo da fala quem é quem.

Mas, em diários, essa questão vai a outro nível. O tempo inteiro, quem está se comunicando com o leitor não é uma entidade desconhecida, como é o caso do narrador em terceira pessoa. Um narrador em terceira pessoa tem o direito de ser impessoal, de não demonstrar uma personalidade. Ele tem direito a não ter uma voz própria.

O narrador de um diário não pode ser assim. A grande maioria do livro, se não todo ele, será transmitida ao leitor sob um ponto de vista único, que pertence a uma personagem com identidade própria. Uma personagem que tem sotaque, idade, escolaridade, estilo, bandas favoritas, amigos, toda uma história de vida, por aí vai.

Sem uma voz única, todo o trabalho gasto no desenvolvimento do seu enredo vai por água abaixo, porque o livro será basicamente sem sal. Sem personalidade. Sem gosto.

O mínimo que se espera de um livro em formato de diário é que o protagonista soe como uma pessoa da idade e contexto social certo. Por exemplo, se o seu protagonista é uma criança de 7 anos, de forma alguma essa personagem pode ter a voz de uma mulher adulta de 31 anos.

Para desenvolver uma voz própria para seu narrador, o caminho principal é conhecendo-o. Converse com ele. Escreva algumas cartas e páginas do diário só por diversão, sem compromisso com a história. Separamos 17 perguntas que você deve fazer às suas personagens para ajudar nesta tarefa.

Outra ideia interessante é ler outros romances epistolares e observar quais recursos o autor utilizou para dar uma voz própria ao narrador e desenvolver a história. Inclusive, uma técnica de treinamento para escrita interessante é tentar escrever uma cena qualquer com a voz de outro narrador.

E aí, autor? Já escreveu algum romance epistolar? Compartilhe seus desafios e soluções. Sua opinião contribui para uma comunidade cada vez mais forte de escritores.

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