Todo bom leitor de ficção já se deparou com certos clichês. O herói escolhido, que é destinado a vencer o mal, o vilão que faz um discurso antes da batalha final, a donzela em apuros.
Às vezes, essas narrativas estão tão batidas que a gente só consegue revirar os olhos. Por outro lado, quem nunca se pegou assistindo mil séries com conceitos semelhantes, amando mil protagonistas que seguem o mesmo padrão? Todos temos nossas preferências e, às vezes, um clichê só é um clichê porque ele dá certo.
Por essas e outras, se popularizou em inglês o termo “trope”, do grego “tropos”, que se refere a recursos narrativos comumente usados na ficção. Em outras palavras, seria algo semelhante ao “clichê”, mas sem uma conotação negativa… ou positiva.
Esses recursos narrativos podem se referir a arquétipos de personagens (ex.: anti-herói), acontecimentos do enredo (ex.: deus ex machina), combinações de personagens (ex.: garota meiga e bad boy), entre outros.
Cada trope tem suas características próprias e pode ser empregada de diversas formas em uma obra fictícia. Se esse uso será bom ou ruim, depende da habilidade do autor.
Por que o “clichê” nem sempre é ruim?
Quando um leitor escolhe ler um livro de um determinado gênero, esse leitor carrega certas expectativas em relação ao enredo. Isso ocorre porque, para que esse livro sequer possa ser categorizado, ele deve seguir certas características típicas do gênero. É devido a essas características que um leitor pode decidir se gosta ou não de gêneros literários específicos.
Tropes tem uma função semelhante. Elas informam o leitor ou espectador sobre o rumo da narrativa, tornando a estrutura do enredo familiar e confortável. Essas estruturas pré-concebidas existem porque elas funcionam.
Por mais insossa que possa parecer para certas pessoas a protagonista sem características marcantes de um romance adolescente, ela é dessa forma por um motivo: identificação.
Existem milhões de garotas que se olham no espelho e não se acham especiais, mas sonham em viver um romance incrível com um homem fantástico. E é por isso que livros como Crepúsculo fazem tanto sucesso, apesar das críticas.
Esses clichês não são inerentemente bons ou ruins. Algumas pessoas odeiam esse tipo de personagem, outras amam. O importante para o autor é investigar a reação que ele deseja provocar no leitor da sua história e que tipo de personagem pode cumprir esse objetivo.
Tropes são nada mais, nada menos do que ferramentas, recursos narrativos que podem ser usados para controlar as expectativas do leitor em relação a uma história. E o mais divertido é que você pode usá-los de várias formas diferentes: direta, irônica, subversiva, etc.
Em outras palavras, você pode se jogar nos clichês mesmo e deixar os leitores se esbaldarem naquela narrativa confortável que eles já sabem que amam ou pode dar aquela invertida nas expectativas, fazendo o leitor acreditar que você vai seguir um caminho clichê e de repente mudar de direção.
O mantra que você deve repetir em sua cabeça é que nenhum desses caminhos é inerentemente superior ao outro. No fim do dia, o que conta é a sua habilidade como contador de histórias.
É tão possível usar todos os clichês do mundo religiosamente e ainda assim dar profundidade à sua história, quanto criar uma narrativa subversiva sem nexo que não vai um palmo além do “efeito de choque”.
Como usar tropes para escrever ficção
Confira um passo a passo para usar tropes de forma precisa e inteligente nas dicas de autopublicação de hoje.
1. Conheça bem o gênero do seu livro
Antes de publicar livro, você deve conhecer os diferentes gêneros literários e suas subcategorias. É essencial se aprofundar no gênero que pretende seguir em seus livros, seja sua intenção seguir à risca o modelo tradicional ou subverter as expectativas do leitor. Afinal, para poder desconstruir algo, é preciso construir primeiro.
No que diz respeito aos tropes, é interessante observar seu uso no gênero que escreve. Quais são os mais comuns? Quais são bem recebidos pelo público? Quais já estão saturados? Quais você, pessoalmente, sente falta de ver em uso? Anote tudo isso.
Você também pode e deve ir além e não observar apenas o que é usado, mas como. Procure autores que sabem fazer um trope super comum não parecer tão clichê. Preste atenção em narrativas que subvertem expectativas.
É recomendável ir além da caixinha do seu gênero literário preferido também. Assim, você conhecerá melhor tropes que costumam ser deixados de fora do gênero que você pretende escrever. Quem sabe você não encontra o trope perfeito para sua narrativa e surpreende os seus leitores?
Lembre-se, no entanto, que ao usar tropes comuns a outro gênero literário, o resultado provavelmente será uma mistura de gêneros. Essa mistura deve ser feita com cautela e moderação. Caso contrário, o seu texto pode parecer bagunçado e desagradar os leitores.
2. Entenda que o que é batido para uns, é novidade para outros
Como mencionamos anteriormente, clichês existem por um motivo. Em sua concepção, eles não são ruins. O problema é apenas que, às vezes, um recurso narrativo é usado com tanta frequência que ele se torna cansativo, repetitivo, previsível.
Às vezes, uma forma de revitalizar tropes “batidos” é usá-los em um contexto diferente. E, não, não estamos nos referindo a uma mistura de gêneros literários. É mais uma questão da proposta.
Por exemplo, já cansamos de ver comédias românticas com protagonistas brancos, magros, cisgênero e heterossexuais. E se os protagonistas dessa história fossem diferentes? Será que os mesmos recursos narrativos ainda pareceriam tão clichês? Filmes como Dumplin’ (2018) e Com Amor, Simon (2018) mostram que não.
Em geral, quando pensamos em um clichê, características relacionadas à identidade da personagem também fazem parte dele. Quando se trata da representação de personagens que fazem partes de grupos minoritários, os clichês são, em geral, estereótipos nocivos.
A personagem gorda vira alvo de piadas, o casal homoafetivo vive um amor trágico para depois um deles morrer no final e por aí vai. Dificilmente é concedida a personagens minoritárias a chance de viver uma história de amor boba e feliz, com todos os clichês que personagens privilegiadas vivem.
Portanto, experimente escrever uma história “clichê” com protagonistas de identidades dissidentes. Escreva essas personagens sem usar estereótipos preconceituosos. Dê a elas histórias significativas e felizes.
3. Subverta as expectativas do leitor
Existem várias formas diferentes de você subverter um trope. Você pode, por exemplo, fazer parecer que vai seguir uma direção previsível e depois mostrar que as aparências enganam.
Imagine, por exemplo, um adolescente estadunidense que pratica futebol americano. Ele é forte, é popular. Essa personagem tem tudo para ser uma tremenda babaca, não é? Mas você pode inverter as expectativas e fazer com que seja um menino sensível, que se sente deslocado.
Atualmente, existem muitas obras de “romance” sobre um casal formado por um homem controlador e obsessivo e uma mulher mais frágil que ele. Essas narrativas são amplamente criticadas pela romantização do abuso, mas ainda assim fazem sucesso.
E se você visse uma história em que esses papéis se invertem? As atitudes obsessivas não deixariam de ser erradas, mas com certeza essa narrativa teria um impacto diferente em quem lê.
É o caso da série sul-coreana Tudo Bem Não Ser Normal (2020), exibida na Netflix. Nela, temos um homem gentil, que trabalha como cuidador e reprime suas próprias vontades, e uma mulher que não demonstra empatia com o próximo e não tem escrúpulos ao correr atrás do que deseja.
4. Dê profundidade à narrativa
O fator fundamental para publicar ebook bem feito utilizando tropes é, simplesmente, escrever um enredo bem desenvolvido, com personagens complexos.
Tropes são ótimas ferramentas, é claro, e você pode escrever um livro inteiro só com isso. Mas você jamais deve subestimar a importância de se aprofundar no seu próprio enredo, nas suas próprias personagens.
O que começa como um arquétipo pode se tornar uma personagem multifacetada. O que começa como uma ideia simples, talvez um pouco clichê, pode se tornar um livro único.
O seu livro só será um bom livro se você se dedicar a ele de verdade. Apenas com o seu trabalho duro você conseguirá bons resultados.
Como aprender mais sobre tropes?
O maior e melhor guia para os tropes da ficção é, sem dúvidas, o site TV Tropes. Trata-se de uma enciclopédia digital com todo o tipo de trope que você pode imaginar, abrangendo desde filmes e livros até animes.
O site está disponível apenas em língua inglesa, mas é possível usar o recurso de tradução automática do Google Tradutor para ler o site em português. Você pode começar a desbravar o site com esse artigo.
E aí, autor? Já tinha pensado em usar os clichês ao seu favor na escrita? Comente aqui com sua opinião!