Nem sempre quando contamos uma história queremos deixar tudo às claras. Em vez disso, pode ser mais interessante fazer um pouco de suspense, deixando certas informações-chave para mais tarde. Chegada a hora da revelação, TCHAM! A reviravolta.
Ou pelo menos é o que esperamos. Mas, na hora de ler uma narrativa cheia de omissões, pode ser que o leitor não se sinta intrigado, surpreso. Não mais do que ele se sente enganado. E aí está o risco.
Como publicar livro em que seu narrador guarde um segredo com sutileza, sem artimanhas baratas para enganar o leitor? Como fazer essa história cheia de mistérios ser verdadeiramente interessante, com uma reviravolta que deixa o leitor indignado, mas de um jeito bom?
Na dica de autopublicação de hoje, vamos mergulhar nas possibilidades dos narradores em primeira pessoa ou narradores oniscientes que acompanham bem de pertinho as experiências da personagem-foco.
A ideia é entender como escrever de forma natural uma narrativa em que o narrador sabe de algo, mas não conta ao leitor.
O primeiro passo para alcançar esse objetivo é pensar por quais motivos um narrador deixaria de passar adiante uma informação que ele sabe. Afinal, a função do narrador é… narrar. Não seria contraintuitivo um narrador guardar segredos?
A resposta é: não necessariamente.
Se o seu narrador é uma personagem com opiniões e sentimentos próprios, esse narrador pode ter seus próprios objetivos obscuros. Nem todo narrador é imparcial, e tudo bem.
Um narrador não-confiável pode omitir um evento deliberadamente apenas porque não quer tocar no assunto. Simples assim. Pode ser um segredo que o pinte de “vilão” da história, e ele queira passar uma imagem positiva. Pode ser uma lembrança dolorosa. Pode ser algo incriminador e ele não quer deixar provas contra si mesmo. Ele pode simplesmente não se sentir aberto a revelar esse segredo no começo da narrativa.
Obviamente, para cada motivação, é fundamental compreender também qual o contexto da narrativa. Esse narrador deixou um diário? Uma gravação? Ele escreveu um livro autobiográfico? Ou ele está conversando com outra personagem?
De acordo com o contexto da narrativa, o nível de intimidade com o narrador-personagem muda. Um diário tende a ser mais pessoal e cheio de segredos, mas ainda assim é um documento, de modo que a personagem pode escolher não falar abertamente sobre certos eventos com medo de que alguém encontre seu diário.
Uma conversa, por sua vez, envolve a abertura que a personagem sente com o ouvinte. Pode ser que esse personagem-narrador comece tímido, guardando segredos, e se solte aos poucos ao longo da história. Se tratando de uma narrativa que imita a oralidade, é possível que esse narrador se contradiga em alguns momentos.
Em uma autobiografia, faz sentido que o narrador-personagem tente passar uma determinada imagem e “enfeite” a história um pouco. Em uma entrevista, pode ser que o entrevistador pressione o personagem-narrador a revelar certas informações em momentos críticos, e por aí vai.
A narrativa também pode seguir um outro modelo, acompanhando a personagem conforme ela vive as experiências referentes ao momento presente da história.
Esse modelo costuma usar um narrador onisciente, que pode ter foco em apenas uma personagem e ter acesso direto aos seus pensamentos, de modo que a personagem não poderia mentir nem omitir nada do leitor de propósito.
Nesse contexto, o pulo do gato é outro. Você deve pensar em como funciona o fluxo de consciência.
Nossos pensamentos costumam ser engatilhados por alguma coisa. Eles não veem completamente do nada. Entramos em contato com algum estímulo e isso traz uma reação da nossa mente. Não é como se pensássemos 24 horas por dia sobre tudo o que já vivemos e tudo o que sabemos.
Portanto, mesmo que sua personagem saiba de algo, não quer dizer que ela está pensando nisso no momento da narrativa. Aquela informação pode não ter vindo ao caso naquele momento.
Para construir uma narrativa em que uma informação importante seja escondida do leitor por boa parte da história de modo natural, sem que pareça que o narrador escolheu enganar o leitor, é necessário trabalhar as cenas de modo que não existam gatilhos para essa informação.
O enredo deve ser arquitetado para que, finalmente, quando for oportuno revelar essa informação ao leitor, a própria cena leve a essa revelação. E, é claro, para que existam dicas sutis mas presentes o bastante para que essa revelação surpreenda o leitor, mas faça sentido em retrospectiva.
Por fim, uma última possibilidade… a perda de memória. Essa é talvez a mais perigosa de todas as opções, pois pode parecer uma saída fácil para um problema difícil. Contudo, ainda é uma possibilidade, até mesmo na vida real.
Às vezes, uma pessoa pode sofrer um acidente que bloqueia sua memória por um certo período de tempo, o que tem um impacto óbvio na sua vida. Outras, uma pessoa pode sofrer uma experiência tão traumática que, como mecanismo de defesa, é simplesmente deletada da sua memória.
Se você escolher publicar ebook que siga esse caminho, é fundamental que você pesquise muito. Descubra quais as diferentes formas que uma pessoa pode perder a memória, como exatamente isso acontece, quanto tempo a perda de memória pode durar, como ocorre a recuperação, como os pacientes costumam lidar com isso… enfim, pesquise tudo o que puder imaginar sobre o assunto.
É importante que todo o processo seja verossímil, que exista uma razão lógica para a perda de memória da personagem e que tudo isso seja abordado com respeito.
E, em todo caso, vale sempre a pena se perguntar: qual a importância de guardar esse segredo na minha história? Uma reviravolta mirabolante não salva uma história mal contada.
Às vezes, você pode perder tanto tempo escondendo um segredo do leitor só para criar aquela reviravolta, que acaba deixando de lado o que realmente importa: construir um bom enredo, com personagens complexas e uma narrativa coerente.
Não engane seus leitores à toa! E, se precisar, faça com naturalidade e coerência.
E aí, autor? Seu narrador já teve que esconder um grande segredo?
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Adorei a forma de desenvolver uma história.
Sempre escrevi minhas historinhas diárias em pedaçinhos de papéis. Tenho uma Saga dos Anjos quase completa, desde de 2015 e uma história do Ano 44 DC, que se passou na Gália. De uma nitidez incrível.
Estava nos meus planos de lançar em 2019 no Brasil, mais cair doente e minha mãe morreu. Tudo ficou escuro. Tive que voltar para a Suíça onde moro e aí, chegou a Pandemia. Sou inscrita nesse site da BiblioMundi, com o pseudônimo de Campos Dourados. Vou organizar melhor minhas anotações e vou publicá-los.
Muito obrigado pela oportunidade e pelos esclarecimentos.
Merci beaucoop!