Como criar uma religião ficcional

Quando optamos por publicar livro de ficção, temos a possibilidade de explorar mundos para além do que vivenciamos aqui e agora. Universos inteiros podem surgir a partir das nossas palavras. O que percebemos, no entanto, é que criar um mundo, ainda que ficcional, costuma ser tarefa para muito mais do que sete dias.

Para povoar um universo ficcional, precisamos levar em consideração diversos elementos: desde o clima, a fauna, a flora… até elementos sócio-culturais. Entre eles, o que nos interessa para as dicas de autopublicação de hoje é a criação de uma religião.

Pensar em religião é algo que transpassa desde o intangível, como a própria criação do mundo e outros eventos sobrenaturais, até o prático. Por exemplo, o impacto que uma religião tem em uma sociedade.

Pense no Brasil, por exemplo. Ainda que vivamos em um estado laico, o cristianismo está em toda parte em nossa sociedade. Inclusive no calendário. Temos feriados inteiros dedicados ao cristianismo: Natal, Páscoa, Corpus Christi, entre outros. O país simplesmente para por causa da religião!

E mais, o nosso vocabulário está repleto de religião: “meu deus”, “nossa senhora”, “cruz credo”, “deus me livre”. Todas essas expressões são comuns até mesmo para quem não acredita em deus.

Esses são elementos simples, que fazem parte da vida da maioria dos brasileiros independentemente das suas crenças pessoais e que comumente acabam marcando presença em obras de ficção também.

Esses são só os aspectos corriqueiros do cristianismo no Brasil para uma pessoa que não é particularmente devota. Para os devotos, a religião representa uma série de dogmas, rituais, uma rotina e uma comunidade.

A religião também pode representar dilemas, conflitos. No Brasil mesmo vivenciamos uma forte discussão sobre o quanto a religião deveria influenciar na legislação. Afinal, embora o país seja laico na teoria, ainda há uma forte presença de ideais cristãos da moral e da ética no congresso.

Falar de religião também tem a ver com discutir o que é a ideologia dominante. Aqui, falamos sobre “cristianismo” de forma ampla… mas essa mesma religião, que começou no antigo testamento da Bíblia, se desdobrou em várias.

Inclusive, antes do  cristianismo, houve o judaísmo. E a partir do cristianismo, surgiu o protestantismo e do protestantismo diversas outras vertentes que são muito fortes hoje em dia, cada uma com organização própria.

Se existe uma religião dominante, que é considerada o “padrão” em uma sociedade, existem outras religiões que ficam à margem. No Brasil, podemos pensar nas religiões de matriz africana, cuja prática era proibida em período escravocrata, e até hoje sofrem ataques.

Ainda assim, podemos encontrar elementos culturais dessa religião que alcançam os não-devotos, como a realização de oferendas para Iemanjá no ano novo, usando vestes brancas.

Tudo isso é para dizer que, sim, a religião está por toda parte. E não poderia ser diferente só porque se trata de um mundo da ficção.

Bem… Poder até pode. Mas você deve se perguntar se esse universo seria plausível para começo de conversa.

De onde surgem as religiões?

Em geral, religiões estão conectadas a mitos cosmogônicos. Isto é, mitos da criação do universo. As religiões também podem estar conectadas a elementos da natureza, fazendo com que as práticas religiosas tenham influência em fenômenos naturais (ao menos segundo as crenças dos devotos).

Tudo isso pode ser relacionado à necessidade de compreender o funcionamento do universo e, por vezes, o sentido da vida. A religião permite que você compreenda o mundo e o seu lugar nele.

Para pensar no surgimento de um mundo ficcional sob uma perspectiva religiosa, é interessante que você tenha como ponto de partida o surgimento dessa religião em si. Isto é, quem começou a praticar essa religião, onde esse povo se encontra geograficamente, como eram suas condições de vida.

Se uma religião surgiu em um deserto, então seus ritos podem ser muito diferentes de uma religião que surgiu no meio de uma floresta tropical.

Da mesma forma, se um povo depende da agricultura para sua subsistência, pode ser interessante que seus ritos religiosos tenham a ver com a boa colheita.

Antes de partir para a próxima etapa, você deve saber mais ou menos qual a história do surgimento do mundo segundo essa religião e quais as suas principais entidades (a religião pode ser monoteísta ou politeísta e, mesmo sendo monoteísta, pode ter figuras sobrenaturais que servem ao deus maior).

A partir daí, você pode pensar no desenvolvimento dessa religião:

  • Ela ainda é uma crença nova?
  • Ela assumiu uma estrutura altamente organizada, com hierarquia complexa e ampla expansão territorial? Ou é organizada em pequenas comunidades e/ou práticas individuais?
  • Existem templos e/ou locais específicos para adoração?
  • Os devotos costumam se reunir?
  • Existem líderes religiosos?
  • Existem eventos históricos e/ou datas comemorativas importantes para os devotos?
  • Quais os principais ritos seguidos pelos devotos? (Ex.: comparecer à missa todo domingo, batizar os filhos, confessar os pecados, fazer orações, comer hóstias…)
  • Existe algum código de conduta para os devotos? Se sim, como é?
  • Quais os principais símbolos dessa religião?
  • Essa religião se tornou parte da crença dominante?
  • Qualquer pessoa pode se tornar devota?
  • Qual a relação dessa religião com animais e plantas? Existe algum ser sagrado?
  • Existe uma escritura sagrada dessa religião?

Respondendo essas perguntas, você terá a base da sua religião ficcional. Em seguida, para firmar as suas ideias, experimente resumir a principal crença/dogma dessa religião.

Qual o papel da religião na sua história?

A conexão entre as suas personagens e a religião pode depender de diversos fatores. Por exemplo, o quão próximas elas se encontram do surgimento dessa religião e que tipo de envolvimento as entidades apresentam, de fato, com o universo material.

Em textos religiosos, você provavelmente encontrará diversas menções do(s) deus(es) se comunicando diretamente com os seres humanos e operando milagres. Contudo, na contemporaneidade, é provável que a maioria dos devotos não espere vivenciar tais eventos fantásticos em pessoa, contando apenas com uma conexão intangível com o mundo espiritual.

Se você publicar ebook de fantasia, terá total liberdade para explorar uma possível conexão direta entre as entidades e os seres humanos. Inclusive, é possível que os sacerdotes usem magia concedida pelos deuses.

O que você precisa avaliar agora é qual o papel que a religião deve ter na sua narrativa. Algumas opções são:

  • Religião no pano de fundo – a religião está presente na história apenas como parte da caracterização da sociedade a qual as personagens pertencem.
  • Religião como cerne de conflitos político-sociais – a religião contribui para o enredo ao causar/impulsionar conflitos. Ex.: religião A vs religião B; religião vs ciência; religião vs estado; religião & estado vs o povo.
  • Religião como poder milagroso – a religião concede habilidades sobrenaturais aos seus devotos, tornando sacerdotes em verdadeiros magos, influenciando fenômenos da natureza.
  • Deuses e entidades presentes – a religião não diz respeito apenas aos seus devotos, mas também apresenta deuses e entidades como personagens presentes na narrativa.

É importante lembrar-se que quando falamos do papel que um elemento tem na narrativa, estamos falando daquilo que realmente estará presente no texto final.

Pode ser que na sua concepção de mundo, os deuses tenham contato direto com os grandes sacerdotes… mas e se nenhuma das suas personagens for um grande sacerdote? E se elas forem apenas pessoas comuns que jamais tiveram contato direto com qualquer evento milagroso e estiverem destinadas a viver assim até o fim?

Saiba qual é a história que você quer contar. Entenda como a religião se encaixa nisso e como ela pode contribuir narrativamente. Pode ser só uma ferramenta de ambientação. Pode ser um ponto de conflito no enredo. Pode ser a estruturação de um sistema de poder mágico. Pode ser parte ativa da história na forma de personagens.

E aí, autor? Já criou uma religião do zero?

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